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Nas margens do mangue Clássico da contracultura, filme de Neville d'Almeida perdido por 40 anos terá 1ª exibição no país
DE SÃO PAULO Um homem entra em convulsão no meio da Bolsa de Valores. Consegue se arrastar até a porta. Vomita as tripas e desaba numa poça de lama. Em paralelo, galos se engalfinham numa briga sem fim. Em "Mangue-Bangue", o diretor Neville d'Almeida traça um paralelo entre homem e bicho para construir o que chamou de um "painel de 1971", tempo de milagre econômico, drogas, liberdade sexual, censura e preconceito. Foi essa a época que o cineasta tentou dissecar nas sequências do filme que rodou no Mangue, zona de prostituição carioca a algumas quadras da Central do Brasil, que visitou com o amigo Hélio Oiticica no começo dos anos 70. Com medo da ditadura, ele pôs os dois rolos do filme na mala e fugiu para Londres, onde revelou os negativos. Só dois anos mais tarde, em Nova York, D'Almeida encontrou Oiticica, que morava lá, e decidiu mostrar o filme numa sessão no MoMA, o museu de arte moderna, onde os rolos ficaram esquecidos por décadas até serem reencontrados e restaurados. Agora, mais de 40 anos depois de feito, "Mangue-Bangue", um clássico perdido da contracultura, será mostrado pela primeira vez no Brasil numa retrospectiva do cineasta no Sesc Santo Amaro. "Quis fazer um filme de ruptura", disse o diretor ao rever o filme em sessão exclusiva para a Folha, em São Paulo. "Estava revoltado com a censura. Então, queria mostrar as drogas, gente tomando um pico na veia, esse vômito que carrega toda a ditadura, sequências brutais." Em cena, prostitutas e travestis aparecem se drogando e os atores Maria Gladys e Paulo Villaça encarnam homem e mulher em busca de liberdade -algo entre ode e crítica à condição humana em tempos de exceção. Trata-se também de uma forma excepcional. O filme foi o ponto de partida da colaboração de D'Almeida e Oiticica que resultou nas "Cosmococas", instalações que mergulham o espectador em imagens, música e cenografia. Escrevendo sobre o filme, Oiticica identificou na obra uma "edição em blocos geométricos, uma estrutura em moto perpétuo", já que o roteiro, sem texto, embaralha as sequências num vaivém arrebatador de imagens que alternam beleza e repulsa. Nas palavras de Luis Pérez-Oramas, curador de arte latino-americana do MoMA, "Mangue-Bangue" oscila entre "o excrementício e o puro, a alvura e o mundano, o agônico e o extático". Depois de restaurado pelo museu americano a um custo de R$ 200 mil, o filme veio à luz numa sessão em Nova York há quatro anos, no auge da crise financeira que abalou os mercados e instaurou um novo ciclo de miséria. "'Mangue-Bangue' ganhou então uma dimensão urgente e atual para mim", escreveu Pérez-Oramas. "É a imagem de um mundo de poder reduzido ao vômito, uma crítica radical do nosso tempo e também uma das mais acerbas imagens da decomposição formal na arte ocidental. Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros |
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