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Crítica romance

Monumento minimalista, livro de uma só frase tem narrativa breve e perfeita

MARCELO BACKES
ESPECIAL PARA A FOLHA

F. C. Delius era inédito no Brasil, um desses bons autores alemães que não haviam chegado. Sua narrativa "Retrato da Mãe Quando Jovem" é breve e perfeita.

Numa tarde de sábado de janeiro de 1943, uma mulher alemã, provinciana, passeia por Roma, poucos dias antes do nascimento de seu primeiro filho.

Ela vê um mundo estranho enquanto se dirige a um concerto de Bach, elaborando o que mais tarde escreverá na carta ao marido, pastor protestante, chamado à guerra no front africano.

Caminhar faz bem, o médico recomenda, e é possível seguir seus passos exatos até a igreja dos luteranos alemães, em Roma, a cidade que não será bombardeada porque tem arte e cultura demais.

A mulher sente saudades da simplicidade da província em meio ao esplendor eterno de Roma, contempla o "garfo" de Netuno e lembra Lutero, acha que o catolicismo é pagão em sua suntuosidade, confronta o Velho Testamento com o antissemitismo, se perguntando por que falta pão, se a guerra é vitoriosa, e desconfiando dos nazistas, quando pouco antes ainda rezava pelo Führer.

Enquanto carrega a gravidez, seus medos e suas esperanças, pelas ruas de Roma em uma hora de caminhada, a mulher analisa as diferenças entre a águia alemã e a italiana, ainda unidas àquela altura.

A política é tratada com sutileza, as observações permeadas de notícias da guerra e citações bíblicas, e ela resume o mundo quando percebe que os italianos são mais compostos que os alemães em vestes civis, e estes mais aprumados que aqueles quando vestem farda.

Singela, luterana, ela é contra a opulência do papa e do Führer. E isso se reflete inclusive na forma simples da narrativa, de uma só frase, com um só ponto, ao final, e sem iniciais maiúsculas nem nos parágrafos -quebrados singular, mas harmonicamente-, que acompanham o ritmo do andar da mulher.

Com sua Molly pudica e contida, pouco joyciana, mas que também afirma a vida -e em meio à guerra-, Delius consegue um monumento minimalista, sóbrio, discreto, sem sentimentalismo, apesar de se tratar de sua própria mãe.

A distância discreta da terceira pessoa consegue se aproximar mesmo assim do fluxo da consciência de uma mulher a caminho de se tornar mãe, cuja limitação contemplativa é trabalhada poeticamente, oferecendo uma existência e uma cidade conforme raramente conseguimos vê-las nos tempos mediados de hoje.

E tudo fica ainda mais grandioso quando sabemos que a criança que a mulher espera é o próprio escritor que imagina tudo, tantos anos depois.

MARCELO BACKES é escritor e tradutor, autor de "Estilhaços" (Record), entre outros.

RETRATO DA MÃE QUANDO JOVEM
AUTOR Friedrich Christian Delius
EDITORA Tordesilhas
TRADUÇÃO Luis S. Krausz
QUANTO R$ 27,50 (144 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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