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Crítica romance

Narrativa apresenta delicioso elogio do ilusionismo ficcional

ALFREDO MONTE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Serena, a protagonista do novo romance de Ian McEwan, relata como, nos anos 1970, se envolve numa operação que a aproxima de Tom Healy, escritor que seria financiado (sem o saber) pelo departamento de espionagem onde ela é uma funcionária subalterna.

Apaixonando-se, fica num dilema: como contar a ele que está sendo usado como instrumento da Guerra Fria?

Eis os fatos "sólidos" da narrativa, com uma personagem que nos pega de jeito com sua voz peculiar.

Como em "O Inocente", McEwan utiliza a espionagem, o recuo temporal e a educação sentimental da protagonista para projetar inquietações atuais sobre o futuro da Inglaterra.

Sua obra oscila entre o passado que emerge em decisivas mudanças de costumes ("Na Praia") e o presente ameaçando personagens na defensiva ("Sábado").

Mas eis que, disseminadas na narração de Serena, temos pistas de que John le Carré vai dar lugar a Paul Auster.

Ou ao McEwan de "Reparação", um romanção bem sólido (e à primeira vista surpreendente num autor que produzira algo tão "virada do século" e pós-modernista como "Amsterdam", talvez sua obra-prima) e que se revelava "líquido" -era apenas uma das inúmeras versões de fatos com as quais uma escritora lutava durante boa parte da sua vida.

[O leitor que não queira saber surpresas da nova trama deve parar de ler por aqui.]

Em "Serena", conhecemos algumas obras de Tom Healy. A principal delas é o próprio relato que estamos lendo, onde o escritor revela ser o espião da existência da agente secreta que o monitorava.

Mais ainda, trata-se de um cabo de guerra entre duas concepções de mundo: leitora voraz, Serena quer a ficção nos trilhos da representação fingidora, sem os bastidores à mostra, sem malabarismos metalinguísticos; Healy, como escritor, obriga-a a ver os truques todos, a fabricação do ilusionismo.

Um dos detalhes mais deliciosos desse elogio do pacto ficcional que é "Serena" mostra como nós, leitores, fomos manipulados. Havíamos seguido a "voz" da personagem carismática dizendo "não vou perder muito tempo com a minha infância e a minha adolescência".

Descobrimos então que essa afirmação se devia ao fato de que o escritor, pesquisando a vida de Serena, manteve uma impressão vaga desse período de formação.

A razão: ao procurar a irmã dela, ficou chapado de baseado ("embora possa ter esquecido quase tudo por causa da névoa da erva").

É um "mútuo engodo", do qual o leitor também participa com prazer, se estiver disposto a assistir à peça de olho nos bastidores.

ALFREDO MONTE, doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP, é professor e criador do blog MONTE DE LEITURAS (www.armonte.wordpress.com)

SERENA
AUTOR Ian McEwan
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Caetano W. Galindo
QUANTO R$ 39 (384 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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