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Crítica contos

Livro de Le Clézio traz fantasias de uma sensibilidade nômade

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"História do Pé e Outras Fantasias", mais recente livro de Jean-Marie Gustave Le Clézio, acaba de ser lançado no Brasil e corrige uma recepção distorcida do escritor francês, em grande parte reforçada pelo Nobel que lhe foi atribuído em 2008.

Prêmio literário com conotações político-humanitárias, a distinção da Academia Sueca acabou por consagrar a imagem de um autor voltado para a temática pós-colonial, que procurou dar voz a culturas exógenas, com narrativas localizadas para além das fronteiras metropolitanas e habitadas por migrantes transplantados para terras estrangeiras.

Descendente de bretões que foram para as Ilhas Maurício no século 18, Le Clézio criou, de fato, uma literatura atravessada pela experiência da viagem.

O romance "O Africano" remete a seu encontro, após a Segunda Guerra, com o pai, que fora trabalhar como médico em colônias inglesas da África. E, após marcante vivência no México, esse escritor nascido em Nice se dedicou ao estudo das mitologias maia e nahuatl.

Traços desse mitologismo se projetam em "Peixe Dourado" (peregrinação às origens de uma jovem raptada do Saara) e num romance de aventuras como "O Caçador de Tesouros".

São livros distantes do estilo febril e das alternâncias formais de seu primeiro romance, "Le Procès-verbal" ("O Interrogatório", prêmio Renaudot de 1963).

Mas, se Le Clézio migrou de uma escrita próxima de "O Estrangeiro" (Camus) e do "nouveau roman" para uma literatura mais narrativa, conservou uma sensibilidade nômade, de quem contempla coisas e seres à distância, buscando uma aproximação cautelosa, senão tortuosa.

O conto ou novela em três partes que dá título ao novo livro indica essa maneira enviesada de narrar.

Em "A História do Pé", Ujine é uma mestiça plenamente integrada à vida parisiense -mas não a seu corpo.

Os pés desproporcionais, sobre os quais se ergue uma silhueta graciosa, são um incômodo, um índice de inadequação: "Então é isso que se chama solidão. Estar sozinho como um dedão do pé".

Nem a etnia, nem o namorado (que a princípio aquece seus pés, mas que ela descobre ser um narcisista alheio a sua gravidez) são empecilhos maiores -e toda a maestria de Le Clézio consiste em extrair outros desenraizamentos do estranhamento com que Ujine pisa o chão.

Contos que fincam pé na história contemporânea estão ao lado de meditações sobre o narrador que tece enredos sobre a fragilidade ou vela pela memória ultrajada.

Ao final, Le Clézio inseriu um posfácio intitulado "Quase Apólogo".

Discutindo o ensaio "Miséria da Literatura", de Schopenhauer, ele advoga o papel do escritor como "caçador aventuroso", que não obedece a um cálculo, para quem "escrever é igual ao metrô": deve respeitar convenções e itinerários, porém colhendo o imprevisível dos rostos, da "estrela da vida pendurada no negror das pupilas".

É uma definição possível dessa literatura na qual "nada haverá de ser salvo", mas que tem empatia pela memória dos vultos que viu passar em nosso "trem infernal".

HISTÓRIA DO PÉ E OUTRAS FANTASIAS
AUTOR Jean-Marie Gustave Le Clézio
TRADUÇÃO Leonardo Fróes
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 59,90 (em média)
AVALIAÇÃO ótimo

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