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Orquestras são arma contra pobreza, diz criador de El Sistema

Rede de ensino de onde saiu Gustavo Dudamel teve início dentro de uma garagem, com só 11 participantes

Maestro José Antonio Abreu afirma que, sem projeto social, violência na Venezuela seria ainda mais grave

CLEMENCY BURTON-HILL
DO “GUARDIAN”

O maestro José Antonio Abreu trabalha em um escritório dentro de um shopping center banal no centro de Caracas, a poucos passos de uma das mais movimentadas ruas da cidade venezuelana.

Na tarde em que conversamos, o movimento nas ruas era intenso. No entanto, durante o curto percurso que nos separava do estacionamento, fomos acompanhados por três seguranças ostensivamente armados.

Assim é Caracas, uma das cidades mais violentas do mundo. O índice de homicídios na Venezuela é três vezes superior ao do Iraque e quatro vezes mais alto que o do México. Em média, 53 pessoas são mortas por dia ali.

Essa desanimadora estatística ocupa meus pensamentos quando chego para o encontro com Abreu, 73.

O economista e maestro tem uma revolucionária filosofia que, desde 1975, gira em torno da ideia de que educação intensiva e gratuita de música erudita para os mais pobres cidadãos pode influenciar positivamente na solução de problemas sociais.

Mais de 380 mil crianças matriculadas em programas nacionais de música confirmam a hipótese de Abreu. Delas, 80% provêm de famílias de baixa e média renda.

VIOLÊNCIA

Dos 2 milhões de alunos que o programa formou desde sua criação, muitos se tornaram, além de músicos, advogados, professores, médicos e funcionários públicos.

No entanto, um dos grandes paradoxos do El Sistema, apelido pelo qual o programa criado por Abreu na Fundación Musical Simón Bolívar se tornou conhecido, é que não importa seu sucesso, não importa que tenha criado músicos de imenso sucesso como o maestro Gustavo Dudamel, não importa o número de países ricos que procurem imitá-lo: os índices de criminalidade continuam a subir em seu país natal.

Abreu concorda que essa é uma estatística "extremamente grave". Mas aponta indícios que parecem provar que, sem a extensa rede de núcleos (como são chamadas as escolas musicais comunitárias), orquestras e coros do programa, a situação poderia ser ainda mais sinistra.

"O Banco Interamericano de Desenvolvimento, o governo da Venezuela e a Corporação Andina de Fomento supervisionam constantemente os projetos da fundação", diz, "porque investiram muitos recursos".

"Sempre que um estudo de avaliação de impacto é realizado, os resultados são unânimes. As crianças participantes do programa conquistam resultados acima da média na escola e demonstram grande capacidade de ação comunitária coletiva. As orquestras e corais ajudam na criar um senso de solidariedade. O envolvimento se torna uma arma contra a pobreza, a desigualdade, a violência e o abuso de drogas."

VALORES

Abreu é uma figura humilde que dedicou a vida ao que define como "um projeto de desenvolvimento humano".

"A ideia me ocorreu porque percebi que, na Venezuela, a educação musical não incluía orquestras para jovens, e eu percebia que as crianças que participavam de orquestras desenvolviam uma percepção mais humana do papel na sociedade."

O projeto foi iniciado com apenas 11 crianças em uma garagem local -origens humildes que se tornaram famosas e contrastam fortemente com as cenas vistas, por exemplo, no Royal Albert Hall, 30 anos mais tarde, mas sua convicção quanto à possibilidade de promover transformação social via música já era absoluta desde o começo.

"Eu tive certeza já no nosso primeiro ensaio", ele diz, com um brilho forte em seus olhos castanhos. "Disse àqueles primeiros 11 integrantes que estávamos criando o início de uma rede que transformaria a Venezuela em potência musical e socorreria as crianças de baixa renda."

Alguns dias mais tarde, em conversa com Frank di Polo, violinista e líder original da orquestra, perguntei se ele se lembra daquele momento. "É claro", responde, rindo. "O maestro Abreu sabia desde o começo o que estava criando e o que poderíamos realizar."

El Sistema, apesar do apelido, não é um "sistema" de educação musical, mas, como insiste Abreu, "uma concepção com respeito à função da música na sociedade".

Formado por uma vasta rede de escolas, orquestras e corais que agora se estende pelas 23 províncias da Venezuela, o programa envolve em média três adultos para cada criança matriculada.

Não importa quem vença a eleição presidencial venezuelana em outubro -Hugo Chávez ou Henrique Caprilles-, é inconcebível que o apoio ao programa seja retirado. Sete governos venezuelanos sucessivos, de todos os matizes políticos, deram apoio a El Sistema, cobrindo cerca de 90% de seu orçamento operacional.

Um dado importante é que as verbas vieram sempre dos departamentos de assistência social, e não dos departamentos de cultura.

Isso seguramente se deve à aguçada visão política de Abreu, cujo corpo franzino e modos de Madre Teresa ocultam uma formidável inteligência estratégica.

"O elemento fundamental que vem determinando o apoio recebido são os resultados que conquistamos. El Sistema se provou eficaz no campo social", diz. "Para os venezuelanos, a educação musical é hoje um direito constitucional e legal."

Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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