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Crítica por ela

Discurso libertário de autora não tem lugar em sua ficção

A relação com o mundo masculino é uma ameaça; o erotismo, uma danação; o sexo, mero tributário do amor

FRANCESCA ANGIOLILLO
EDITORA-ADJUNTA DA “ILUSTRADA”

Se (e somente se) lido com benevolência, "Cinquenta Tons de Cinza" se aproxima dos chamados "romances" britânicos que eram entretenimento de massa na passagem do século 18 para o 19.

O termo "romance" aqui não designa gênero literário em seu sentido amplo nem, em sentido restrito, uma história de amor.

Define, sim, aquela classe de narrativas populares em que a trama, cheia de reviravoltas, importa mais do que a profundidade e o realismo dos personagens -esses sendo prerrogativas das "novels", aos quais se contrapõe. A palavra de ordem do "romance" é fantasia.

Fantasia, sobretudo a de cunho sexual, parece não ocupar a cabeça juvenil de Anastasia Steele. A desajeitada estudante de literatura Ana (para os íntimos) é mais afeita às aventuras dos livros do que às da vida real.

Sem graça ou vaidade, ela paradoxalmente atrai o misterioso magnata Christian Grey, que se lança à sua sedução.

Ana, então, se vê dividida entre ceder ou não ao relacionamento sadomasoquista proposto por Grey e com regras fixadas em um minucioso contrato.

A cavalo de um vocabulário irritantemente pobre (que faz com que as hiperdescritivas cenas de sexo sejam o menos constrangedor da narrativa), a ação avança de uma a outra situação supostamente glamourosa, colocando sempre a caipirice de Ana em contraste com a desenvoltura com que Grey navega em sua opulência.

Se "Cinquenta Tons" se alinha a certa tradição das letras inglesas, é porque segue, em seus rudimentos, as convenções do gênero cultivado pelas irmãs Brönte, Emily (1818-1848) e Charlotte (1816-1855) -embora esses devam ter sido tomados de segunda mão, através da leitura da saga "Crepúsculo", base notória da trilogia de James.

No "romance", temos a donzela que cai em desonra, incapaz de resistir ao apelo do "byronic hero". Pense-se no Rochester, de "Jane Eyre" (Charlotte Brönte, 1847), ou no Heathcliff de "O Morro dos Ventos Uivantes" (Emily Brönte, 1847). Ou em Edward Cullen, o vampiro de Meyer, matriz de Christian Grey.

Mas a heroína de James fica a dever na comparação com as resolutas protagonistas das Brönte, e em "Cinquenta Tons" não é dado a Ana o direito de se conciliar com seu desejo. A relação com o mundo masculino é uma ameaça; o erotismo, uma danação; o sexo, mero tributário do amor.

O discurso libertário que James prega publicamente não tem lugar em sua ficção. Ao pé do altar, e não da cama, é onde Ana quer ver o amante.

A simplória protagonista de "Cinquenta Tons" deve ter lido sem a devida ironia a afirmação com que Jane Austen (1775-1817), matriarca da literatura feminina em inglês, abre "Orgulho e Preconceito", que diz que todo homem solteiro em posse de certa fortuna deve estar em busca de se casar. Pobre Anastasia Steele.

CINQUENTA TONS DE CINZA

Avaliação ruim

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