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Análise

O livro de Joyce resistiria até hoje construído em torno do vazio?

MARCELO TÁPIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pois é: "Ulysses" está na ordem do dia, novo de novo. O relato sobre o dia 16 de junho de 1904 vivido por Leopold Bloom, Stephen Dedalus e Molly Bloom reaparece questionado em seu "conteúdo". Numa frase: toda a vida e a vida toda cabem nas horas de "Ulysses".

Noventa anos depois de publicado, o livro resistiria por um fator que lhe fosse externo, algo como um "fetiche do difícil", construído em torno do vazio?

A questão está no que se quer encontrar no romance-marco do século 20. Ele não foi feito para ser entretenimento fácil -embora seja divertido- ou de utilidade relativa a carências do leitor, sejam elas quais forem.

Mas nele se encontram o homem comum, a morte, o amor, o ódio, o sexo, o adultério, a carne, a perda de um filho, a razão, o delírio, a mudança, a culpa, a descoberta, a grande aventura do mundo. É difícil e fácil como o mundo, pois criado à semelhança dele.

"Estilo" e "conteúdo" são indissociáveis no texto de Joyce. Nele, a linguagem também é personagem: para cada capítulo, um narrador, um modo de contar e de criar; para o todo, obras, formas, fatos, pensamentos que se cruzam.

Homero e referências díspares de toda a história literária convivem em "Ulysses".

Num dia em que aparentemente pouco acontece, há a chance de um tempo marcante, eterno, que tudo contém. Nele há espaço para um café da manhã, para um enterro, para um sabonete com aroma de limão siciliano.

Para o "pai de todos", por vezes imponente, por vezes uma lânguida flor flutuante; para todo o corpo da mulher, o topete do amante, os carnívoros palitando a dentuça, a cama, a lembrança, o reencontro, a alma, a transmutação, o pai, o filho e o espírito santo.

Como escalar o cume desse dia? Com coragem e alegria. Há diversos meios de acesso; a jornada desafiadora traz recompensas.

Para enxergar as graças de "Ulysses", não se pode caber em si: é preciso enfrentar o indefinido, às vezes indecidível. E, como que por um buraco de fechadura, um mundo excitante, uma história imensa, até aparece, revelando-nos como pode ser imortal o emaranhado da consciência, o enredo da vida e da escrita.

Para evocar uma opinião célebre, leiam-se versos da "Invocação a Joyce", de Jorge Luis Borges, aqui traduzidos: "Que importa nossa covardia se há na terra/um só homem valente,/[...]que importa minha geração perdida,/esse espelho vago,/se teus livros a justificam.[...] Eu sou todos aqueles que teu obstinado rigor resgatou. Sou os que não conheces e os que salvas".

Marcelo Tápia, poeta e tradutor, é doutor em teoria literária pela USP, diretor da Casa Guilherme de Almeida e organizador do Bloomsday em São Paulo.

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