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Crítica conto Com altos e baixos, livro é a melhor reunião de ficções curtas do ano NELSON DE OLIVEIRAESPECIAL PARA A FOLHA O leitor logo perceberá que o livro "Contos da Ilha e do Continente" é fruto do amor de uma mulher pelo ódio de um homem. Essa primeira coletânea de contos do misantropo Lúcio Cardoso não existiria se não fosse a dedicação apaixonada de Valéria Lamego. As 27 ficções agora reunidas estavam abandonadas no imenso quarto de despejo do século 20. Para recuperá-las, Lamego precisou abrir caminho num cipoal de papel velho, seguir pistas incertas e escapar de armadilhas deixadas às vezes pelo próprio ficcionista. A misantropia de Lúcio Cardoso, disfarçada no cotidiano, manifestava-se plenamente em sua arte. Cardoso escrevia sempre contra. Contra o casamento, a família, a religião etc. Seu alvo principal eram as perversões sociais, tanto dos bem-nascidos quanto dos párias. A coletânea recém-lançada traz narrativas de momentos diferentes de sua carreira. Nenhuma, porém, com a diabólica intensidade da "Trilogia do Mundo sem Deus" ou do romance "Crônica da Casa Assassinada". CINISMO O conto mais antigo, "Cantiga de Roda", é de 1933. O mais recente, "Colchão Velho", é de 1958. Os melhores são os que não apresentam traços do regionalismo. Cardoso odiava o homem civilizado. Sua vingança foi mais intensa justamente nos contos em que esse ódio agiu de forma ardilosa e cínica. Em "Os Náufragos", de 1944, o narrador recorda os desastres marítimos de sua infância. Quando havia gente rica a bordo, os naufrágios traziam alegria para a comunidade pobre. Eram dias de festa, com romaria e os pescadores cantando. "Simples Encontro", de 1946, é magistral. Durante um passeio, a ingenuidade de uma jovem encontra a insanidade de um estranho. Se o autor mineiro enxergava o espírito de Virginia Woolf em Clarice Lispector, este conto prova que havia também em si mesmo muito desse espírito. "Acontecimento na Noite", de 1950, narra o encontro erótico de um adolescente e uma velha, numa praia. As sereias existem, mas não são como as imaginamos. "Colchão Velho" é, talvez, o melhor de todos. Um avatar do odioso e furibundo "homem do subsolo", de Dostoiévski, pragueja, sem qualquer pudor cristão, contra os indigentes do mundo. O novo livro de Lúcio Cardoso sai num momento estratégico. O ano tem sido muito fraco em boas coletâneas de ficções curtas. Mesmo com seus altos e baixos, "Contos da Ilha e do Continente" é até agora a melhor de 2012. Ela forçará até mesmo uma pequena revisão histórica. A partir de agora, qualquer antologia do tipo "os melhores contos brasileiros do século 20" não poderá ignorar, por exemplo, preciosidades como "Simples Encontro" e "Colchão Velho". NELSON DE OLIVEIRA é doutor em letras pela USP e autor de "Poeira: Demônios e Maldições" (Língua Geral).
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