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Matisse viveu entre o paraíso e o inferno

Artista, que criou obras estonteantes, se isolou para pintar e foi repudiado pela crítica quase toda a sua vida

Livro analisa relação conturbada do pintor com contemporâneos seus, como Picasso, Rénoir e Cézanne

DE SÃO PAULO

Não seria exagero dizer que a obra de Henri Matisse foi construída na solidão. "O mundo todo lhe deu as costas", contou Lydia Delectorskaya, sua última mulher. "Todos se alinharam aos cubistas, e ele nunca quis se expor, demonstrar o quanto aquilo o machucou."

Matisse então fugiu para compor sua obra. Nos dois momentos chave de sua produção -os anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, quando fez a "Dança", e o fim da vida, quando criou suas colagens de papel recortado-, o artista estava quase sempre sozinho.

Em sua biografia, Hilary Spurling revê a relação complicada do artista com seus contemporâneos, da reverência que tinha por Cézanne, "um deus para ele", e a amizade com Renoir aos atritos intensos com Picasso.

"Eles se reconheciam como rivais", diz Spurling sobre a relação entre Matisse e Picaso. "Mas as brigas fizeram com que cada um tentasse coisas que antes seriam impossíveis em seus trabalhos."

Em reação ao "Nu Azul", de Matisse, Picasso começou a pintar "Les Demoiselles d'Avignon", obra que inaugurou o movimento cubista.

Mas as aproximações não vão muito além. Matisse estava mais preocupado com a vibração das cores do que em rever conceitos de volume e espaço. Suas obras eram visões "estonteantes, ofuscantes e alegres", "um clamor que parecia berrar das paredes".

Ele pendurou na porta de seu ateliê um pequeno quadro de Cézanne e tinha o hábito de olhar para a tela do mestre pós-impressionista antes de trabalhar, uma espécie de guia visual.

Na construção de sua obra, no entanto, Matisse só teve o apoio real da mulher com quem passou quase toda a sua vida, Amélie Parayre.

Num de seus retratos mais célebres, que escandalizou Paris, ele pintou o rosto dela cortado ao meio por uma faixa verde, dividindo a tela em fortes campos de cor, quase uma síntese de seu estilo.

ESPINHA DORSAL

"Amélie era a única pessoa que acreditava nele no mundo", diz Spurling. "Ele dizia que a amava, mas que amava mais a pintura. Essa era a condição do casamento, e ela foi sua espinha dorsal."

Tanto que muito da história de Matisse está na correspondência entre eles. Em suas viagens, Matisse escrevia quase todos os dias à mulher, num estilo que sua biógrafa compara ao fluxo de consciência de Virginia Woolf.

Numa das cartas, ele descreve apaixonado a paisagem marroquina: "Quando parou a chuva, brotou da terra uma vegetação florescente", escreveu. "Todas as colinas em torno de Tânger, antes cor de pele de leão, ficaram recobertas de um verde extraordinário sob o céu turbulento, como num quadro de Delacroix."

"Ele foi um dos grandes missivistas do século 20", diz Spurling. "Ler essas cartas é como estar na pele dele, ver o mundo pelos olhos dele."

Muitas dessas visões, aliás, são recorrentes também na obra do artista. Em várias fases da vida, Matisse voltaria a alguns temas com certa insistência, quase um reflexo do que sentia no momento.

Quando se mudou para o balneário de Collioure, no sul da França, Matisse pintou uma janela aberta à luz ultracolorida, exemplo de sua "convicção de que a pintura dá acesso a outro mundo".

Mais tarde, em 1914, às vésperas da Primeira Guerra, ele volta ao tema, mas pinta um vazio negro visto pela janela, o que o poeta Louis Aragon viu como abertura para "o silêncio de um futuro negro".

São dois pontos de vista que refletem o céu e o inferno da vida real de Matisse, um artista atormentado pela incerteza e pela obsessão.

Ao final da vida, ele diria que suas telas mais alegres surgiram em momentos amargos-uma luz que vem das trevas.

(SILAS MARTÍ)

MATISSE: UMA VIDA

AUTOR Hilary Spurling
TRADUTOR Claudio Marcondes
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 109 (592 págs.)

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