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CRÍTICA ROMANCE

"Herzog" é uma explosão intelectual e afetiva

Livro de Saul Bellow, Nobel de Literatura, narra o descontentamento fanfarrão e rancoroso do personagem-título

O brasileiro, escolado em "dom Casmurro", pode desconfiar que o narrador, colado no delírio de Herzog, nada tem de confiável

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há nova tradução de "Herzog" (1964) na praça, romance que muitos acreditam ser a obra-prima de Saul Bellow (1915-2005), prêmio Nobel de Literatura de 1976.

Filho de judeus russos emigrados para o Canadá, Bellow nasceu na região de Québec, mudando-se ainda menino para Chicago, cidade da qual se tornou o grande escritor.

O enredo é pouco mais que o seguinte: Moses E. Herzog, professor universitário bemsucedido, larga a carreira e a família por amor de uma mulher que, em pouco tempo, não apenas dilapida a sua herança como o trai com um amigo, e finalmente impede o seu convívio com a filha.

O restante da trama do livro é uma explosão de questões intelectuais e afetivas, milagrosamente conservadas juntas sem que uma diminua a intensidade da outra.

O modo básico pelo qual o romance opera esse milagre é a intercalação entre a narrativa em terceira pessoa, com amplo uso do discurso indireto livre, e as cartas que Herzog passa a escrever a todo mundo.

Movido pelo mais visceral descontentamento, ele se põe a debater, em um estilo rancoroso-fanfarrão, histérico-cômico, a necessidade de uma reforma universal da humanidade.

Herzog escreve para ex-namoradas, ex-esposas, o presidente dos Estados Unidos, o psicanalista, Luther King, Nietzsche, Teilhard de Chardin, Heidegger, o banco, a mãe... Escreve até para si mesmo, terminando por uma carta a Deus, cuja intensidade emocional é confrontada com uma "alegria idiota", desprovida de significado.

O leitor brasileiro, escolado em "Dom Casmurro", pode desconfiar que o narrador, colado no delírio de Herzog, nada tem de confiável, e que certos estão a mulher e a amante que o acusam de ter perdido a sanidade. Ou pode imaginar, à maneira dos estudos culturais, que a diatribe de Herzog evidencia um delírio do deslocamento do homem tradicional pelo novo poder feminino.

Ocorre, porém, o seguinte: em toda a "prosa teatral" de Herzog (como bem a caracteriza Philip Roth), ninguém recebe mais violento ataque ou desconfia mais de suas interpretações brilhantes do que ele próprio.

Ao manter-se como alvo preferencial da sua verve, sem mesmo deixar de considerar sensatamente a questão de sua insanidade, ninguém parece mais sensível ou confiável do que ele.

Dessa perspectiva, Herzog dá nome ao homem que, no limiar do abismo, ainda forceja para formular argumentos que não obriguem a tomar o fracasso da vida privada como determinação necessária da existência pessoal ou mesmo pública.

A verdadeira luta no romance não é contra a mulher dos novos tempos, mas contra o niilismo que parece inevitável neles.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp

HERZOG

AUTOR Saul Bellow

EDITORA Companhia das Letras

TRADUÇÃO José Geraldo Couto

QUANTO R$ 56 (400 págs.)

AVALIAÇÃO ótimo

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