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Crítica Fragmentos

Livro inacabado de Pessoa é retrato fiel do homem moderno

CARLOS FELIPE MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Livro do Desassossego" não é bem um livro, é só um projeto, o mais ambicioso que Fernando Pessoa concebeu. São centenas de textos avulsos, às vezes rascunhos e fragmentos, sempre em desordem, quase todos atribuídos a Bernardo Soares, "semi-heterônimo".
As dificuldades começam pela questão da "autoria". Na primeira notícia dada pelo autor (1913), o livro é assinado por Fernando Pessoa; em seguida, Vicente Guedes, outro semi-heterônimo; por fim, Bernardo Soares.
Na verdade, é um livro-projeto múltiplo, espelho do restante da obra pessoana, com seus heterônimos, diferentes e contraditórios modos de ser. Só que, lá, cada um fala por sua vez; aqui são várias vozes mescladas em um só fluxo narrativo.
E Pessoa nunca teve certeza de que todas aquelas páginas pertencessem, de fato, ao projeto em curso. Ele chegou a incluir ou excluir passagens e capítulos inteiros, voltou atrás mais de uma vez, enquanto o livro crescia.
É um relato sem cronologia nem enredo, mas com um cenário: a zona comercial de Lisboa, com seus escritórios, cafés e ruas estreitas. E a obsessão devaneante do narrador, Bernardo Soares, "ajudante de guarda-livros".
Pessoa não definiu a ordem em que essas páginas deveriam ser publicadas. Um "enredo" resolveria, mas, como este não existe, a solução (aconselha Richard Zenith, organizador do livro) é "ler sempre fora de ordem: eis a ordem correta".
Por isso, cada edição (há várias, a partir da pioneira, de Jacinto P. Coelho, em 1982) dá um novo arranjo às cerca de 400 páginas deixadas por Pessoa. O desassossego é o mesmo; cada edição é um livro diferente.
O organizador é obrigado a tomar, pelo autor, decisões que este não soube ou não quis tomar. Quais páginas incluir e em que ordem? Como decifrar (nem todas as páginas são datilografadas) a caligrafia por vezes hieroglífica? E por aí vai.
Logo, a edição ideal seria uma caixa repleta de folhas ou maços de folhas, soltas, para o leitor arranjar a seu gosto. "Livro do Desassossego" é mágico, mutante; renasce e se refaz, iluminadamente novo, a cada leitura.
Mistura desordenada e caótica de narrativa, diário íntimo, prosa poética, reflexões filosóficas etc., o livro tem até um pouco de autoajuda: Bernardo Soares ensina às mulheres como "trair o seu marido em imaginação".
Inacabado, repleto de lacunas, hesitante, sempre a se metamorfosear em outra coisa, o livro, obra-prima, é o retrato fiel da consciência fragmentada do homem moderno. O leitor não pode perder.

CARLOS FELIPE MOISÉS é professor de literatura da USP e autor de "Fernando Pessoa: Almoxarifado de Mitos" (2005), entre outros livros

LIVRO DO DESASSOSSEGO
AUTOR Fernando Pessoa
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 45 (544 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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