Crítica romance

Segundo livro confirma talento revelado pela autora na estreia

Tatiana Salem Levy, que tanto elogio granjeou para seu romance de estreia, "A Chave de Casa", lança agora "Dois Rios". A melhor notícia é que sim, se confirmam as qualidades conhecidas.

Estão lá a linguagem fluente e densa, capaz de manter sereno o prumo do relato mas também de enveredar pela poesia; a força psicológica notável na construção de personagens; para nem falar do mérito talvez maior, a coragem para adentrar territórios que a narrativa brasileira pouco frequenta, como o excelente erotismo a partir do ângulo feminino.

"Dois Rios" é nome da localidade do interior do Estado do Rio de Janeiro, à beira-mar e na presença de intensa natureza tropical, onde dois dos três protagonistas, irmãos gêmeos, passaram muitas férias, com o ramo materno de sua família.

Os irmãos são uma mulher e um homem, e a memória que evocam, aos 33 anos que têm no presente do relato, aborda a discrepância social e cultural entre pai e mãe.

A mãe, ainda viva, é vítima de uma dramática forma de TOC. Já o pai, falecido no fim da infância dos filhos, pesa na história como um fantasma, porque foi bem em sua morte que os gêmeos pisaram pela primeira vez no pantanoso território da hybris, que não pode ser aqui explicitado para preservar ao leitor o duro prazer de conhecê-la.

O terceiro protagonista é uma francesa peculiaríssima que se envolve com os dois irmãos, em tempos distintos, sem que um saiba do outro.

Nascida na Córsega, filha e neta de gente muito simples, ela carrega um coração transplantado e leva uma vida enigmática.

A imagem de dois rios se espalha por outras camadas de significação, numa maré de duplos que nada tem de artificial, e, pelo contrário, obedece à força do enredo e das vidas dos personagens.

Além dos rios e dos gêmeos, o livro tem duas partes, cada uma narrada por um dos irmãos, e se sucedem partidas e chegadas com certa simetria, assim como se entrecruzam temperamentos e gestos opostos.

Tudo isso ecoando na triste obsessão da mãe, que começa como uma inocente brincadeira na famosa calçada bicolor de Copacabana e acaba num emparedamento que encarcera a filha em casa e expulsa o filho do Brasil.

Não bastassem todos esses acertos, "Dois Rios" tem outro mérito sutil, que vale sublinhar: é um romance profundamente ligado ao mar, situado nele em grande medida, esse monstro natural que participa do cotidiano de milhões de nós, mas que é uma espantosa quase-ausência da ficção nacional.

Com este romance de tema cosmopolita que acolhe estruturalmente o acaso nosso de cada dia, Tatiana Salem Levy sobra na linha de chegada, na imaginária maratona da nova geração de escritores brasileiros.

LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na UFRGS e autor de "Filosofia Mínima" (Arquipélago Editorial).

DOIS RIOS

AUTORA Tatiana Salem Levy

EDITORA Record

QUANTO R$ 34,90 (224 págs.)

AVALIAÇÃO ótimo