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Crítica romance

Nova tradução de "Guerra e Paz" é acontecimento capital

Rubens Figueiredo verteu diretamente do russo o famoso livro de Liev Tolstoi

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O fenômeno das traduções de escritores russos vertidos do original se tornou tão corriqueiro que corre-se o risco de não valorizar, na justa medida, o trabalho de tradutores como Boris Schnaiderman e Paulo Bezerra (responsáveis pelas edições de Dostoiévski e outros autores) ou de Rubens Figueiredo -que acaba de lançar sua versão de "Guerra e Paz", de Liev Tolstói (1828-1910).

Ao mesmo tempo, o louvor dessa empreitada intelectual muitas vezes acaba por se sobrepor à oportunidade de atualizar, na releitura dessas obras inesgotáveis, a enigmática presença dos clássicos.

Dito isso, é preciso afirmar que a tradução de "Guerra e Paz" por Rubens Figueiredo é um acontecimento capital, como já haviam sido suas versões para os romances de Tolstói "Anna Kariênina" e "Ressurreição".

Mesmo para leitores que não falam russo, um breve cotejo com as traduções anteriores de Oscar Mendes e João Gaspar Simões (ambas, ao que consta, a partir de idiomas intermediários como o francês e o inglês) dá provas de que Rubens Figueiredo se aproxima mais das ambiguidades de um escritor russo que parecia fazer literatura a contragosto, como uma espécie de pecado irresistível, purgado por catilinárias inoculadas na ficção.

NOBREZA

O conde Tolstói não tem aquela aspereza identificada pelos críticos no "plebeu" Dostoiévski (1821-1881).

A escrita de Tolstói, ao contrário, é aderente ao ponto de vista da nobreza, tem tamanho senso de medida e elegância que a contrapartida crítica é a voz de um narrador que desfaz a ilusão romanesca, confunde-se com o autor e comenta a ação em chave cautelar.

Isso dá uma direção unívoca a sua condenação das ambições políticas que mergulharam a Rússia no horror das guerras napoleônicas.

Mais do que um romance histórico, "Guerra e Paz" constitui uma "Ilíada" moderna, uma epopeia sem heróis -ou cujos heróis abdicam de seus destinos, dando lugar ao mito do povo que ostenta valores igualitários, antecipando o pietismo evangélico da obra tardia de Tolstói.

As cenas iniciais, em que uma miríade de personagens circula pelos salões de São Petersburgo e Moscou, são o anfiteatro da conversão moral de duas personagens: o príncipe Andrei Bolkónski, que se engaja nas tropas do general Kutúzov numa recusa do comodismo de sua classe, e Pierre, filho ilegítimo do conde Bezúkhov e porta-voz de um progressismo que tanto choca a sociedade czarista da época.

As decepções amorosas estão na raiz de suas transformações. Apaixonado por Natacha Rostóv (grande personagem feminina de Tolstói, ao lado de Anna Kariênina), Andrei é preterido por Anatole Kuráguin, cuja irmã Hélène será a causa das infelicidades conjugais de Pierre.

DESGOVERNO

As aleivosias da paz apenas preparam os tempos de guerra, em que um Andrei moribundo, socorrido por Napoleão no campo de batalha, descobre a vacuidade de todos os ídolos.

Enquanto isso, Pierre partilha o sofrimento de camponeses tragados pelas razões de Estado.

No "Epílogo" dessa rede monumental de relatos de "Guerra e Paz", Tolstói justapõe ao rebaixamento das personagens ficcionais e históricas uma meditação sobre o desgoverno da história.

Isso reverbera, na literatura do século 20, numa recuperação da dimensão ensaística do romance, na voz fria, também em litígio com os sortilégios da arte, de escritores como o alemão Thomas Mann (1875-1955) e o sul-africano J.M. Coetzee.

GUERRA E PAZ

AUTOR Liev Tolstói

EDITORA Cosac Naify

TRADUÇÃO E APRESENTAÇÃO Rubens Figueiredo

QUANTO R$ 198 (2.536 págs.)

AVALIAÇÃO ótimo

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