Índice geral Ilustrissima
Ilustrissima
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Arquitetura

Os bons filhos à casa tornam

Projetos residenciais já não são motivo de culpa

RAUL JUSTE LORES

RESUMO Por purismo ideológico ou preconceito de classe, arquitetos modernistas escondiam as casas que projetavam. Em 1986, um livro de Marlene Acayaba, recém-reeditado, fez o tabu se esvair. Paulo Mendes da Rocha, que tem agora entrevistas reunidas, ecoa o debate: "Eis que surge às vezes um Copan, uma maravilha!"

EM UM CONDOMÍNIO exclusivo na marina do Guarujá, arquitetos tiveram a ousada ideia de botar para conversar Maria Antonieta com Miami. O encontro das colunas gregas com vidros espelhados verdes espanta, assim como cornijas e mansardas à beira-mar.

O pastiche arquitetônico sempre imperou nos bairros nobres da cidade. "Residências em São Paulo, 1947-1975" [Romano Guerra Editora, 496 págs., R$ 110], livro de Marlene Acayaba recém-reeditado em fac-símile, trata justamente daquela minoria de casas especiais assinadas pelos maiores nomes da escola paulista de arquitetura.

O período tratado pela pesquisadora vai do início dos primeiros cursos exclusivamente de arquitetura em São Paulo (Mackenzie e FAU-USP) até 1975, quando Marlene se muda para a casa desenhada pelo marido, Marcos Acayaba, um raro exemplar híbrido de diálogo entre as escolas carioca e paulista, mostrando que Niemeyer e Artigas poderiam influir e coexistir em um único projeto.

"Houve dúvidas na universidade quando decidi colocar minha própria casa na pesquisa, mas eu tinha certeza de que queria colocar esse lado pessoal no livro, de quem estava vivendo nessa experiência", diz a autora.

A residência do casal Marlene e Marcos até hoje recebe visitas de arquitetos, estudantes e turistas estrangeiros, que não param de tirar fotos do grande arco de concreto armado que serve de cobertura à casa, apoiada nas extremidades do terreno em desnível, garantindo vista por todos os lados. "Para o turista estrangeiro, estas casas da escola paulista são a cara de São Paulo. É o que eles verão aqui e em nenhum outro lugar, é o fruto da terra, é o que nos é autêntico", afirma a arquiteta.

Enquanto, no Rio, a casa era mais aberta, tropical, exuberante, a casa paulistana sempre foi mais "indoor", para dentro, diz Marlene, "primeiro como proteção à feiura, depois pela segurança". Esse patrimônio construído estava imprensado entre dois monólitos.

Havia a crença, bastante difundida no mercado imobiliário e em certa elite paulistana, de que as casas modernas eram frias, pesadonas, "ruins para morar", pouco funcionais -logo, inferiores aos chalezinhos suíços e casas neotoscanas que se espalham do Pacaembu ao Morumbi. Mas, mesmo entre modernistas e acadêmicos, a construção de residências era algo menor, que apenas servia para pagar as contas.

PURISMO IDEOLÓGICO Não eram poucos os arquitetos modernos que escondiam ou ignoravam casas em catálogos e livros sobre sua obra, favorecendo apenas as grandes obras públicas. Ao contrário dos EUA, onde obras seminais de Frank Lloyd Wright e Mies van der Rohe são residências, cultuadas e estudadas em cada metro quadrado, aqui essa categoria burguesa foi ignorada em tempos de purismos ideológicos.

Marlene se debruçou sobre esse legado, então recente, e fez uma obra exaustiva, didática, sobre as casas selecionadas. No mundo pré-Google Maps, ela incluiu mapas da implantação de cada habitação, a área ocupada e a planta. Também a composição familiar de quem iria morar em cada uma delas, quem construiu, os responsáveis pelas instalações, a estrutura e o programa pedido pelo cliente - áreas sociais, de serviço, quantos dormitórios e banheiros, o que teria externamente e até a orientação de quartos e sala em relação ao sol, além dos materiais empregados.

NADA CARETA A obra foi publicada originalmente em 1986, com prefácio assinado por Gilberto Freyre. Rapidamente, as casas modernas deixaram de ser tabu e o livro passou a ser adotado em dezenas de faculdades de arquitetura pelo país.

"Hoje os arquitetos fazem casa sem culpa, não diminui o status", brinca. E sobre os ataques aos "caixotões frios"? Marlene responde rápido: "Não há receita de bolo para morar, mas sabemos que esses arquitetos estavam buscando o morar diferente, o novo. Havia muito experimentalismo, e essas casas permitem fugir à convenção", afirma. "Não têm mil suítes nem espaço gourmet, em geral tudo é aberto, não há esconderijo. Amo o sol, e essas casas sabem receber a luz. São casas para quem não é careta."

Algumas coisas funcionaram, outras não. Ela mesmo lamenta ter sido obrigada a instalar uma grade para proteger a casa (o projeto original, como em diversas casas paulistanas modernistas ou não, era aberto). Como nem todo mundo está disposto a viver em um laboratório de revoluções estéticas -ou há muito careta construindo-, boa parte das casas retratadas foram construídas para servir de moradia aos próprios arquitetos ou a seus parentes.

No time dos sonhos arregimentado por Marlene, há casas de Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Eduardo de Almeida, Oswaldo Bratke, David Libeskind e a casa de vidro de Lina Bo Bardi. As mais recentes são de Décio Tozzi, Eduardo Longo e a própria residência da autora. "Hoje os terrenos encolheram, as casas são mais apertadas, mas o que essa escola começou a plantar há 60 anos continua a ser visto entre os jovens arquitetos."

O casal anda cercado por eles. Marcos Acayaba abriu escritório com vários jovens na histórica galeria Metrópole, na avenida São Luiz, na região central. Ele vai de bicicleta à estação Butantã do metrô, de onde segue diretamente para o centrão. Vários outros arquitetos usam a bicicleta. "Nos anos 70, em plena ditadura, havia a fuga da cidade e viemos para este bairro planejado e afastado. Hoje a juventude quer ficar na cidade, está redescobrindo tudo."

Apenas uma das casas retratadas já foi demolida. Acayaba é contra o tombamento delas. "É o pior que poderia acontecer a elas. Isso cria um ônus terrível para a família que cuida, que preserva. Os imóveis têm um ciclo de vida que deve ser respeitado."

IDEIA TOLA Ainda contemplando a escola paulista e o ato de morar na cidade, outro título a ser lançado nas próximas semanas é "Encontros - Paulo Mendes da Rocha" [Azougue Editorial, número de páginas a definir, R$ 29,90], organizado por Guilherme Wisnik.

O livro traz diversas entrevistas, depoimentos e conferências do arquiteto, premiado em 2006 com o Pritzker, o Nobel da arquitetura, entre 1970 e 2008. Ele ecoa o debate de funcionalismo começado na obra de Marlene. "A arquitetura é invenção. Eis que surge às vezes um Copan, uma maravilha! Antes de mais nada porque o Oscar Niemeyer soube transformar a matriz antiga, a casa", diz, sobre o edifício onde já morou.

"Lá você põe uma sandália qualquer, veste por cima do pijama uma capa de chuva e vai comprar jornal na avenida São Luiz, no domingo, numa boa".

E cita outro prédio onde trabalhou por alguns anos. "O Conjunto Nacional na avenida Paulista é o outro belo exemplo de transformações; possui cinemas, cafés, casas. Você cruza de uma rua para a outra, ninguém precisa saber o que você está fazendo. Então, a ideia de funcionalismo em arquitetura é meio tola. Inclusive nós não estamos prontos ainda. O homem não possui uma forma definitiva. Existe uma ideia de um eterno inacabamento da nossa existência."

Sobre sua obra despojada, comentando supostas restrições técnicas na construção no Brasil, Paulo Mendes da Rocha cutuca a arquitetura contemporânea. "Há hoje no mundo um emprego exagerado de sofisticadas tecnologias para se obter aspectos apenas exteriores, decorativos, cuja rejeição é louvável. É uma virtude [para a obra] mostrar a sua simplicidade."

"Houve dúvidas na universidade quando decidi colocar minha própria casa na pesquisa, mas eu tinha certeza de que queria colocar esse lado pessoal no livro"

No time dos sonhos de Marlene Acayaba, há casas de Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha, Eduardo de Almeida, Oswaldo Bratke, David Libeskind e Lina Bo Bardi

"Há hoje um emprego exagerado de tecnologias para se obter aspectos apenas decorativos, cuja rejeição é louvável. É uma virtude [para a obra] mostrar a sua simplicidade"

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.