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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

ELISA LISPECTOR

JIDOWSKAIA MORDA *, a alcunha mais abjeta, a que mais doía pela impossibilidade de se revidar.

Foi o trauma decorrente de um daqueles fatídicos pogroms que invalidou a minha mãe.

Antes, porém, que isso tivesse acontecido, houve períodos de relativa paz, em que se pôde levar uma vida digna, decente, como a de qualquer família burguesa de antes da Primeira Guerra. Por vezes era até brilhante, e a geração jovem frequentava teatros, concertos, havia recepções, lia-se e falava-se em livros; de outra parte, a vida era apenas calma e rotineira, mas igualmente valorizada nos mínimos detalhes.

Trabalhava-se, estudava-se, sobretudo os homens estudavam as Leis. Orar e observar ao pé da letra os mandamentos sagrados nas yeshivot (escolas superiores religiosas) e nas Sinagogas, resguardar a tradição religiosa no lar através da prática dos ritos, era, àquela época, o que imprimia um sentido à existência.

Olho o retrato de minha mãe e a revejo nas suas lidas diárias, como quando punha a mesa para o chá, a toalha de linho puro de uma brancura impecável, as xícaras de fina porcelana da China, a prataria, a fruteira sustentando três pratos superpostos de tamanhos diferentes e que, quando não contendo frutas variadas, vinham repletos de bolos de mel, biscoitos de chocolate, de fécula, strudel de maçãs e nozes, as bandejas com tortas ou blintzes (espécie de panquecas, geralmente de queijo). O pote de cristal contendo a rósea e translúcida geleia de rosa-chá -um regalo para os olhos e um bálsamo para a alma. Na mesinha ao lado, ronronava o grande e rebrilhante samovar de prata encimado pelo pequeno bule de essência de chá da Índia.

Lembro a mãe atarefada com os preparativos para a comemoração do Sábado.

O Sábado recorda o ritmo da criação divina do universo. "Deus mesmo é o criador do mundo", está escrito. "Seis dias utiliza o homem as coisas terrestres para seus fins, mas no sétimo dia de cada semana confessa que o mundo é de Deus, que a Ele lhe pertence. Desta forma, cada Sábado se converte para o judeu em sua profissão de fé." É o dia destinado à leitura e à meditação, à prática do lazer feito de elevação e autoestima.

Em casa, o Sábado foi sempre um dia santificado em que o repouso contemplativo e as preces entremeavam-se com festividades. A mesa, as roupas que vestíamos, tudo assumia um caráter de amor a Deus e de dignificação da pessoa humana.

Na sexta-feira, antes do cair da tarde, o pai fechava a loja apressadamente e se encaminhava para casa a fim de trocar de roupa e apanhar os paramentos religiosos para ir à Sinagoga.

Mamãe ia da cozinha à sala, supervisionando o preparo dos pratos típicos: guefilte fish (peixe recheado), goldene youch (caldo dourado, na expressão literal, que era o caldo de galinha), o kiguel (espécie de pudim). Então já havia preparado os halot (pães trançados em número de dois, para recordar a dupla ração de maná que os judeus recolhiam no deserto à véspera do Sábado). Já havia igualmente providenciado a preparação do cholent, palavra possivelmente derivada do francês "chaud", em razão de cozinhar-se durante horas no forno brando, destinado para o dia de Sábado, uma vez que nesse dia todo e qualquer trabalho é proibido, até mesmo o do preparo de alimentos.

Entretanto, enquanto movimentava-se na cozinha grande superaquecida, já ia atendendo aos seus protegidos habituais, gente pobre que regularmente vinha em casa buscar o pão consagrado para o Sábado, e alguns kopekes para complementar a ceia da noite festiva. E já os móveis estavam reluzentes, portas e janelas de vidraças limpas, a prata brunhida, os candelabros dispostos sobre a mesa arrumada com jeito de festa.

E havia que separar o seu vestido de noite -na noite do Sábado, a mãe é a Rainha- e retirar do estojo o colar de pérolas, e separar os vestidos das meninas, as faixas para a cintura e as fitas para os cabelos.

(...)

É a Páscoa. A mãe se transforma. Irradia alegria, agitando-se como um pássaro leve e ágil. Aliás, nas semanas que precederam os grandes dias, já ela providenciou a pintura da casa, encomendara os pães ázimos. A prataria saiu das gavetas para ser polida, as toalhas para serem lavadas e repassadas. Na véspera, faz-se a caça ao pão fermentado, ao mesmo tempo em que se troca a louça pela guardada especialmente para o Pessach, e na cozinha panelas e utensílios são escaldados e fervidos em panelões onde se jogam pedras que antes foram ao braseiro e estão rubras como o fogo, com a finalidade de kascheren (purificar).

À mesa: matzot dispostos numa bandeja, e mais as ervas amargas para rememorar as amarguras que sofreram os antepassados no Egito; os charoiset, mescla de maçãs e nozes trituradas, canela e vinho -sua cor evoca a do barro com que os israelitas, durante a escravidão no Egito, preparavam os ladrilhos para a construção das fortalezas de Píton e Ramsés. O ovo cozido, lembrança de oferenda de festiva, sendo ademais um símbolo da luta quando da perda do Templo. Um pratinho com verduras, e água e sal. Após servirem-se dessas porções simbólicas, o pai, à cabeceira da mesa, preside a cerimônia. Reclinado num almofadão, e se lhe perguntarem por quê, responde: "Já não somos mais escravos, somos um povo de homens livres, com direito a tomar o nosso alimento comodamente, como o faziam os senhores gregos e romanos".

O pai começa a cerimônia com o Kiddusch. Servem-se em seguida as carpas, que a mãe, ela própria, preparou com o maior desvelo. Ah, os knedlach -bolinhos feitos da farinha do pão ázimo- com o caldo de galinha dourado! Ninguém fazia os knedlach como a mãe, nem o kiguel de matzot parecia-se com os de quem quer que o soubesse fazer, nem os de batatas raladas, nem os de frutas cristalizadas.

A leitura da Hagadá encerra a noite festiva com o tradicional "Leschana Habaa Biruschalayim", ou seja, "no ano próximo em Jerusalém".

Na Antiguidade, o Shavuot era também a festa das primícias, a festa das peregrinações e das oferendas. Também como reminiscência do caráter campestre de Shavuot, lê-se o livro de Ruth.

Shavuot -a festa da entrega da Lei, os Dez Mandamentos.

Desde os três dias que precedem a Shavuot, o pai já se dedica ao estudo da Bíblia e de outros textos sagrados, especialmente o Talmud.

Em casa começava a reinar uma atmosfera de festa. Márian andava atarefada, da cozinha à sala e desta àquela...

Diz-se que a Torah é doce como o mel e reconfortante como o leite.

... a preparar bolo de mel, tortas de queijo, ah, os brintzes (panqueca de queijo de massa finíssima) que a mãe fazia. Eram de derreter na boca.

O ofício religioso no Templo, no terceiro dia, culminando com festas e danças hassídicas, e o Kiddusch em casa, com os amigos que o pai traz da Sinagoga.

Mas era nas noites de visitas de casais amigos que a mãe irradiava mais brilho. Ninguém tão fascinante no conversar, tão airosa ao movimentar-se no seu mundo que ela tornava tão encantador. Porque nas noites em que os pais recebiam os amigos, jovens como eles, a casa de janelas abertas para a noite, no verão, aconchegante no inverno, era uma verdadeira festa. -A não ser naquelas noites de muito frio, de borrascas de neve, em que os pais se recolhiam para a leitura, ou o terno murmúrio ao pé da lareira, nas demais, a lembrança é sempre da casa alegre, animada e festiva.

n-3

Ah, os penares que se seguiram!

Migrações. Pesares. Dificuldades sem conta. A hemiplegia de que a mãe fora acometida numa fatídica noite de pogrom progredindo devagar, mas insidiosamente.

Um dia, já no Brasil, passados uns poucos anos, jovem ainda -contava só 42 anos- conformada e temente a Deus, a mãe pedira ao pai que lhe comprasse um novo Sidur (livro de orações), e orou durante uma semana inteira, ao fim da qual ela morreu.

Antes, os castiçais de prata (herança materna com que sacrifício preservara durante todo o tempo de viagem e de privações) foram por ela consagrados à pequena Sinagoga local, e assim foi feito.

*Focinho de judeu, em russo.

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