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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Contribuição do 'chorizo' à ciência

Buenos Aires, 1997

IVÁN IZQUIERDO

ME DEDICO HÁ DÉCADAS a estudar os mecanismos da memória. Nos últimos 22, anos venho fazendo isso em colaboração com meu querido amigo Jorge Medina, da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires.

Nossa colaboração requer que nos encontremos com certa frequência para discutir nossa pesquisa e planejar os trabalhos para os próximos meses, seja em Porto Alegre, onde eu moro e trabalho, seja em Buenos Aires.

Num desses encontros, em 1997, Jorge e eu fomos jantar num restaurante portenho famoso pela excelente carne de churrasco que cozinham perto da porta de entrada, sobre a rua Lavalle. Pedimos dois bons bifes de "chorizo" (corte que no Brasil não existe e que, no meu entender, dá a melhor carne assada); como sempre, o dele bem passado, e o meu, ao ponto.

Palavra vai, palavra vem, em certo momento, nossa conversa derivou para o lado de nosso estado de ânimo. Jorge me perguntou: "Viste que quando a gente está meio 'down' costuma esquecer as coisas que acabam de acontecer?".

"Pois é, e, no entanto, lembra bem as coisas do dia anterior ou da semana anterior", disse eu.

Aí, como somos antigos profissionais do ramo, desenhou-se na nossa frente a clara possibilidade de um novo fato biológico: já que as memórias mais novas e as mais antigas pareciam ser diferentemente afetadas por um quadro neuroquímico complexo, como é o de um estado de ânimo depressivo, bem poderia ser que cada tipo de memória dependesse de processos cerebrais separados e não consecutivos, como muitos acreditavam então, principalmente nos Estados Unidos.

Veteranos do tema, não demoramos muito para planejar três ou quatro experimentos-chaves para saber se o que estávamos começando a pensar podia ser verdade: nada menos que a separação funcional da memória de curta duração da memória de mais longa duração.

Enquanto conversávamos e saboreávamos esses bifes gostosos, fazíamos rápidos cálculos sobre quantos animais iríamos precisar, que reagentes seriam necessários e onde seria melhor fazer os experimentos. Naquela época era melhor e mais barato fazê-los em Porto Alegre.

Quando saímos à rua depois das sobremesas, os experimentos já estavam claramente planejados. Se fizéssemos as coisas bem, iríamos responder de maneira definitiva a uma questão que tirava o sono de psiquiatras e psicólogos desde que William James (1842-1910) a formulara pela primeira vez em 1890, bem como explicaríamos processos como a falha seletiva da memória recente na senescência e em algumas doenças, como o mal de Parkinson e o delirium.

Começamos a trabalhar na semana seguinte. Os experimentos deram certo desde o início: estavam bem pensados. Vários tratamentos foram capazes de suprimir por completo a memória recente sem afetar a de longa duração, e vice-versa. Isso demonstrava que a segunda não precisa da primeira, e que o processamento de ambas é paralelo e não consecutivo.

Como dois trens que partem da Estação da Luz: um para na primeira estação e o outro segue por outra via até o Rio de Janeiro. Nossos resultados mudavam todos os conceitos existentes, e achamos apropriado enviá-los à famosa revista "Nature". Foi logo aceito.

Mudamos um conceito básico da memória, respondendo a uma questão levantada cem anos atrás. Muito ajudou aquele jantar, em que percebemos que eu terminava os pratos muito antes do que o Jorge. O conteúdo dos pratos era o mesmo, mas eu os comia mais rápido. Jorge e eu, como bons gaúchos (ou "gauchos") velhos, quando saímos daquele restaurante "al tranquito corto", quase podíamos apostar que nosso trabalho ia dar certo "nomás". Mas o "quase", em ciência, é tão longo...

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