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Internacional

Notícias da escuridão

Livros relatam a vida cotidiana e a cultura na Coreia do Norte

RESUMO

A morte do ditador Kim Jong-il, em dezembro, voltou as atenções do mundo para a Coreia do Norte, cuja vida cotidiana só se deixa conhecer a partir de relatos de raros visitantes estrangeiros que registraram a experiência em livros. Jornalista americana analisa perspectivas de uma sociedade ultrafechada.

RAQUEL COZER

Uma canção ensinada às crianças norte-coreanas em 2008 celebrava um certo general Kim, cuja "vigorosa caminhada" deixava "até rios e montanhas felizes". Estudiosos da Coreia do Norte sabiam na época que a letra não se referia ao líder supremo, Kim Jong-il, porque citações sobre ele eram sempre com o nome completo. O hino era então, concluiu-se, um primeiro anúncio do sucessor.
A qual dos filhos do ditador a letra aludia foi uma dúvida que perdurou até 2009, quando Kim Jong-un, o caçula, foi apontado. A morte de Jong-il, no último dia 17, antecipou a chegada do rapaz ao poder -ele ainda vinha sendo treinado. Isso fez de Jong-un o terceiro da dinastia Kim, sem que quase nada se saiba sobre ele. Nem a idade (entre 28 e 30 anos), nem o passado, nem se terá poder de fato.
Esse é só um retrato da incógnita que a Coreia do Norte, a ditadura mais fechada do planeta, representa. Ainda assim, é um retrato cujos traços chegam ao exterior.
Menos conhecidas são histórias como a da jovem Mi-ran e do rapaz Jun-sang, que, nos anos 90, souberam tirar proveito da falta de luz crônica do país. Pertencentes a classes sociais diferentes, o que impediria o casamento, puderam namorar às escondidas por nove anos, encontrando-se sempre que a cidade mergulhava na escuridão.
Ou a da jovem doutora Kim, que seguiu confiando no regime, a despeito da fome que matou mais de 1 milhão de pessoas nos anos 90, até ser acusada injustamente de traição e daí fugir para a China -onde descobriu que até os cachorros eram mais bem alimentados que os médicos norte-coreanos.
A partir de dramas pessoais como esses, a jornalista americana Barbara Demick costura um dos relatos mais impressionantes de que se tem notícia sobre a história da Coreia do Norte em "Nothing to Envy" [nada a invejar, Spiegel & Grau, 336 págs., US$ 10,68, cerca de r$ 19]. Lançado nos eua em 2008, o livro deve sair no Brasil em 2013, pela Companhia das Letras.

REFUGIADOS Barbara Foi Correspondente Do "Los Angeles Times" Em Seul De 2001 A 2007, Responsável Pela Cobertura Jornalística Das Duas Coreias. noticiar os fatos políticos e econômicos na Coreia do Sul, 15ª maior economia do mundo, exportadora de tecnologia, era relativamente simples.
Já na Coreia do Norte a repórter só conseguiu pôr os pés quatro anos depois de chegar à península, quando enfim lhe foi concedido um visto. E o que viu em 2005 -a capital, Pyongyang, única cidade que recebe estrangeiros- não a convenceu. Concluiu que só entenderia o país estando fora dele, já que lá os moradores não teriam liberdade para dar testemunhos. E iniciou conversas com norte-coreanos refugiados na Coreia do Sul.
Estima-se que, na década passada, mais de 100 mil norte-coreanos tenham entrado ilegalmente na China. Um décimo deles migrou para a Coreia do Sul, onde foi recebida com maior ou menor apoio dos sucessivos governos.
Como o país comunista é muito mais atrasado que seus vizinhos, mesmo os jovens mais bem graduados em Pyongyang sentem o descompasso na mudança (não saber que é necessário retirar a etiqueta de roupas novas é só o exemplo mais banal). Precisam de programas de orientação e recebem subsídio até se adaptarem.
O movimento é recente -antes de 2001, menos de mil habitantes tinham abandonado o país. Começou na metade dos anos 90, quando o sistema de energia elétrica entrou em colapso e a fome começou a matar, enquanto os súditos dos Kim bradavam a plenos pulmões, sem saber que eram ilusórios, refrãos como "não temos nada a invejar neste mundo" -letra que inspirou o título do livro de Barbara.

DIVISÕES A Coreia do Norte, mais desenvolvida que a vizinha ao sul nos primeiros anos da divisão territorial, sempre dependeu da ajuda do bloco comunista, que lhe vendia combustíveis e outros produtos a preços camaradas. Quando o comunismo começou a ruir, com a queda do muro de Berlim e o fim da URSS, a ineficiente economia do país quebrou junto.
As lembranças que a maior parte dos refugiados norte-coreanos têm dos anos anteriores a isso, diz Barbara Demick, é de tempos felizes. Song Hee-suk, uma dos seis personagens abordados no livro, tem trajetória ilustrativa disso.
Nascida em 1945, casada com um jornalista e mãe de cinco filhos, Song era defensora orgulhosa do regime. Por ser filha de mártir de guerra, tinha bom status no sistema de classes criado por Kim Il-sung (1912-1994), primeiro líder da Coreia do Norte e pai de Jong-il. É um sistema quase imutável -alguém de classe alta pode ser rebaixado se for acusado de traição, mas os "hostis", a classe mais baixa, nunca ascendem socialmente.
Nos anos 90, a fábrica em que ela trabalhava desacelerou a produção. Song foi avisada de que não precisava ir todos os dias, mas também começou a receber menos rações diárias de comida -a quantidade e qualidade da alimentação distribuída pelo regime variava conforme classe e trabalho. Quando todos passaram a vender bens e comprar alimentos no nascente mercado negro, ela viu nisso uma traição aos ideais nacionais.
Song perdeu o emprego e viu o marido, a sogra e um filho morrerem de fome, mas não aceitava ter acreditado a vida toda numa mentira. Foi preciso que uma filha a sequestrasse e a levasse para a Coreia do Sul para que ela mudasse de ideia. Em Seul, foi cozinheira e faxineira, arrumou um namorado, juntou dinheiro. Hoje, aposentada, refere-se a Kim Jong-il como "aquele bastardo fedorento".

ESTEREOTIPOS "Para quem não cresceu sendo doutrinado a acreditar que Kim Il-sung e Kim Jong-il foram heróis, é fácil achar que os norte-coreanos são manipuláveis", diz Barbara Demick em entrevista à Folha por telefone, de pequim, onde trabalha como correspondente do "Los Angeles Times" desde 2007. "é muito simples tirar sarro do pensamento do povo norte-coreano. O que tentei fazer foi levá-los a sério."
Em *"Pyongyang" [trad. Claudio r. Martini, Zarabatana, 178 págs., r$ 35]*, publicada no Brasil em 2007, o cartunista canadense Guy Delisle mostra menos complacência. Ele descreve na graphic novel as impressões dos dois meses que passou na capital norte-coreana, no início dos anos 2000, para trabalhar numa parceria entre um estúdio de animação francês e a SEK, produtora estatal de filmes da Coreia do Norte.
Delisle viajou munido de um exemplar de "1984", distopia de George Orwell sobre um sistema totalitário que controla cada aspecto da vida das pessoas -a realidade ali descrita é frequentemente comparada com o cotidiano na Coreia do Norte. De fato, Jun-sang, um dos refugiados entrevistados por Barbara Demick, aparece a certa altura do livro dela, já na Coreia do Sul assustado com as semelhanças entre seu país natal e o cenário imaginado por Orwell.
Delisle, aborrecido com o aparente conformismo dos guias e tradutores que sempre o acompanhavam, chega a emprestar a um deles o livro, a título de provocação. Alguns quadros mais para a frente na história, o tradutor devolve o romance, alarmado, argumentando que não gosta de ficção científica. O cartunista segue ironizando. Não parece mesmo fácil lidar com convicções tão enraizadas como as que ele relata ter ouvido, embora mais difícil, como diz Barbara Demick, seja entendê-las.
As expedições empreendidas por Delisle pela cidade-cartão- postal da Coreia do Norte (até onde uma cidade da Coreia do Norte pode ser um cartão-postal) são, no entanto, visualmente impressionantes. A capital, com 3,2 milhões de habitantes, parece um enorme vazio pontuado por monumentos grandiosos, como a estátua de bronze de 22 metros de Kim Il-sung, e esqueletos de arranha-céus dos quais se usam, quando muito, um ou dois andares.

CINEMA Lançado no mercado de língua inglesa em 2010, *"The Cleanest Race: How North Koreans See Themselves and Why it Matters" [a raça mais pura: como os norte-coreanos veem a si mesmos e por que isso importa, Melville House, 200 págs., us$ 13, cerca de r$ 24]* ajuda a entender por que a Coreia do Norte tem interesse em chamar estrangeiros para melhorar suas animações, como fez com Guy Delisle.
O autor, Brian Reynolds Myers, professor na universidade de Dongseo, em Busan, na Coreia do Sul, e colaborador da "Atlantic", faz no livro um estudo inovador sobre como o regime usou a cultura para alimentar o imaginário patriótico.
Numa sociedade orgulhosa de sua moral, atitudes subversivas não ficariam bem se representadas por atores que fossem legítimos habitantes do norte da península coreana. Melhor, então, retratar comportamentos reprováveis por meio de fábulas com animais, como os ursinhos que, ao longo da graphic novel, Delisle tanto sugere aos animadores que redesenhem.
O cinema da Coreia do Norte está longe de ter a qualidade daquele que o sul-coreanos fazem, mas o país comunista valoriza há décadas a sétima arte. Muito antes Jong-il avançar no projeto de criar uma potência nuclear, os filmes eram sua arma. O primeiro emprego dele, aos 30 anos, em 1971, foi como supervisor do departamento de propaganda do partido dos trabalhadores, o setor responsável pelos estúdios estatais.
Jong-il envolveu-se a ponto de escrever tratados como "On The Art Of Cinema" (sobre a arte do cinema), de 1973, em que explicou seu entendimento de que "a arte e a literatura revolucionárias são meios extremamente eficientes para inspirar as pessoas a trabalhar pelos objetivos da revolução".
A paixão chegaria ao auge nos anos 80, quando, convencido de que seu país não tinha cineastas bons o suficiente para transmitir sua mensagem, sequestrou e manteve por oito anos no país o diretor sul-coreano Shin Sang-ok, a quem pediu uma versão local de "Godzilla" (Sang-ok conseguiu escapar e contou a história em "Kingdom of Kim", o reino de Kim).
A teoria mais polêmica do livro B.R. Myers, elogiada por Christopher Hitchens em artigo para a "Slate", é a de que os Kim apenas usaram música, literatura e cinema para incentivar um racismo e uma xenofobia inerentes à história da Coreia -uma noção dos coreanos de que pertencem a uma raça moralmente mais pura, superior.
Sem entrar no mérito da qualidade dessa produção cultural, Myers conclui que, por meio dela, Kim Il-sung e seu filho explicitaram um afastamento em relação aos ideais comunistas e, ao estimularem o nacionalismo racial, aproximaram-se de regimes de extrema direita.

Estima-se que, na década passada, mais de 100 mil norte-coreanos tenham entrado ilegalmente na China. Um décimo migrou para a Coreia do Sul

Song perdeu o emprego e viu marido, sogra e filho morrerem de fome, mas não aceitava ter acreditado a vida toda numa mentira. Foi preciso que uma filha a sequestrasse

Atitudes subversivas não ficariam bem se representadas por atores norte-coreanos. Melhor retratar comportamentos reprováveis com animais em animações

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