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Reportagem

Falsário legítimo

Heymann e os quadros fajutos do Brasil Império

MARCELO BORTOLOTI

RESUMO

Livros denunciam ação de falsário brasileiro radicado em Paris que, no século passado, teria falsificado importantes obras do Império, atribuindo-as a Debret e Pallière. Vendidas a colecionadores, algumas dessas falsificações foram parar em museus como o Imperial, de Petrópolis, e Castro Maya, no Rio.

Em 2001, um óleo do francês Julien Arnaud Pallière (1784-1862), "Retrato de Amélia de Leuchtenberg", foi posto à venda nos EUA pela Christie's, a maior casa de leilões do mundo.

Era uma obra atraente para colecionadores e museus brasileiros -d. Amélia foi mulher de d. Pedro 1º, e Pallière, um dos pintores-viajantes que melhor retrataram o Brasil no século 19.

"Era uma obra rara como documento histórico relacionado à chegada da segunda imperatriz ao Brasil", diz Maria de Lourdes Horta, ex-diretora do Museu Imperial de Petrópolis, que conduziu a compra do quadro por US$ 30 mil (cerca de R$ 53 mil à época, o equivalente a R$ 65 mil). A pintura mostrava uma mulher de costas -a imperatriz podia ser reconhecida apenas pelo penteado.

Há um mês, a atual direção do museu teve uma surpresa. O quadro foi apontado como falso no livro "Pallière e o Brasil: Obra Completa" [Capivara, 240 págs., R$ 135]. Os autores, Ana Pessoa, Julio Bandeira e Pedro Corrêa do Lago, afirmam que a obra não é de Pallière, nem retrata d. Amélia. É de autor desconhecido, comprada a preço de banana na França, nos anos 50, por Roberto Heymann, mato-grossense que tinha uma casa de antiguidades em Paris. Ele pôs a assinatura de Pallière e passou a obra adiante como legítima.

Segundo o livro, a assinatura segue o padrão de Heymann em outras falsificações. "É um quadro do século 19, mas não tem semelhança com o estilo de Pallière", diz à Folha Pedro Corrêa do Lago, um dos maiores colecionadores de documentos antigos do país.

Em nota, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), que controla a instituição de Petrópolis, anunciou que investigará o caso. Pelo contrato da Christie's, o comprador só pode devolver a obra em até cinco anos, prazo já prescrito.

Para Maria de Lourdes Horta, o quadro é legítimo. A ex-diretora destaca elementos que comprovariam a autenticidade da pintura, como a data de 1829, ano em que d. Amélia chegou ao Brasil, o fato de a mulher segurar um leque, sugerindo procedência estrangeira, e sobretudo os azulejos verde e amarelo do chão, "referência simbólica ao Brasil Império".

Os autores argumentam que, fora a data, que consta de qualquer livro de história, os elementos são coincidências. Dizem que nenhum pintor da corte retrataria a imperatriz de costas, muito menos com uma inclinação sensual no pescoço, como a modelo no quadro.

Não foi um golpe isolado. No acervo do Museu Imperial, segundo o livro, há outro falso retrato de d. Amélia. Mostra, de frente, uma jovem pouco parecida com a imperatriz e com penteado e roupas anacrônicos. Outra falsificação de Heymann, que convenceu clientes de que as imprecisões resultavam da subjetividade que Pallière imprimia aos retratos. A obra foi comprada pelo empresário carioca Paulo Geyer, que doou sua coleção ao museu pouco antes de morrer.

VIAJANTES

Essas duas façanhas já tornariam Heymann digno de nota. Mas sua atuação foi bem maior. Segundo Julio Bandeira e Pedro Corrêa do Lago, ele foi o marchand que mais pôs no mercado pinturas e aquarelas falsas relativas ao Brasil do século 19. "Vendeu ao menos cem falsificações de obras de pintores-viajantes", diz Corrêa do Lago. Apesar disso, é uma figura pouco estudada e quase desconhecida no mercado.

As falsificações do Museu Imperial aparecem nas páginas finais de "Pallière e o Brasil", que cataloga as obras produzidas pelo francês no país, entre 1817 e 1835. Além das autênticas, o livro lista as falsamente atribuídas a ele, incluindo cinco vendidas por Heymann.

O nome de Heymann apareceu associado a obras falsas pela primeira vez em livro de 2007, "Debret e o Brasil: Obra Completa" [Capivara, 708 págs., R$ 195], dos mesmos autores. O catálogo, que relacionava as pinturas e aquarelas de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), integrante da missão francesa no país, apontou 43 como falsificações vendidas por Heymann.

Elas pertencem ao Museu Castro Maya, no Rio, ligado ao Ministério da Cultura. Um estudo encomendado pelo Ibram após a publicação do livro atestou que eram falsas, após 60 anos circulando incólumes por diversas coleções do país.

A falta de pesquisas relativas à produção iconográfica no Brasil do século 19 ajudou a encobrir os golpes, mas a longevidade das falsificações deve-se ainda à mudez dos colecionadores lesados. Ao fim da carreira, Heymann havia perdido a credibilidade. Mas, como as vítimas não queriam divulgar a existência de obras falsas em suas coleções, elas preferiam o silêncio.

Foi o caso de Raymundo Ottoni de Castro Maya (1894-1968), empresário cujo acervo está no museu que leva seu nome. No início dos anos 40, ele comprou de Heymann 550 aquarelas de Debret, incluindo dezenas de falsificações. Em 1947, rompeu com o marchand. Castro Maya sempre falava de golpes do falsário contra terceiros, mas nunca admitiu ter caído neles.

Difícil imaginar que não soubesse. No livro com aquarelas de Debret que publicou em 1954, o colecionador deixou de fora as que mais tarde foram identificadas como falsas. Os Debrets fajutos acabaram revestidos com o prestígio da coleção Castro Maya e por décadas foram louvados pela crítica. Muitos ilustraram livros de história do Brasil e fazem parte do imaginário de gerações de estudantes.

Ao menos cinco falsificações aparecem, não identificadas como tais, em "Índios no Brasil" [Global Editora, 2005, 304 págs., R$ 90], organizado por Luís Grupioni, com textos de Marilena Chauí. Outras três são citadas em "Arte na América Latina" [Cosac Naify, 1997, 366 págs., R$ 119], de Dawn Ades, como exemplos de uma "série extraordinária de imagens muito vivas da sociedade brasileira". Os falsos Debrets também integraram mostras internacionais como a que homenageou Tarsila do Amaral na Fundação Juan March, na Espanha, em 2009.

O que torna a façanha de Heymann mais notável é que suas falsificações não eram boas. Além de retratos de anônimos, que vendia como figuras da nobreza, ele contratava pintores em Paris para produzir aquarelas a partir de gravuras de livros dos artistas viajantes.

Os contratados cometiam erros grosseiros. Trocavam datas, misturavam assinaturas, erravam cores e confundiam estilos. Numa aquarela a partir de uma gravura de Debret, por exemplo, com índios ao chão, um pintor confundiu uma sombra com um rio e fez um indígena flutuar sobre as águas.

Em outro caso, o falsário "tirou o luto" que a família imperial guardava pela morte de d. Maria 1a, colorindo as roupas da corte.

SIMPÁTICO

Descrito pelo embaixador João Hermes de Araújo, que conviveu com ele, como "simpático e agradável", Heymann tinha poderosa rede de contatos.

Quando começou a agir, nos anos 40, ele entrou em contato com herdeiros de artistas que passaram pelo país no século 19 e localizou centenas de obras. Àquela altura, as imagens não valiam muito na Europa, mas eram ouro na América Latina.

Chegou a alcançar prestígio com descobertas como a de aquarelas de Debret que estavam com herdeiros e que, graças a ele, voltaram ao Brasil. Poderia passar à posteridade com esse mérito, mas foi ambicioso. Com segurança, sabe-se que ele e seus auxiliares produziram obras de Debret, Pallière e do alemão Johann Moritz Rugendas (1802-58), que hoje estão entre os pintores-viajantes mais valorizados do mundo.

Aquarelas de Debret, relativamente abundantes, estão estimadas em cerca de US$ 30 mil no mercado internacional. Uma obra de grande porte de Pallière pode chegar a US$ 200 mil.

O estudo mais aprofundado da biografia de Heymann decerto pegará de calças curtas outros museus e colecionadores. No fim deste ano, sai a segunda edição de "Rugendas e o Brasil" (Capivara), de Pablo Diener e Maria de Fátima Costa. Desde que a primeira foi publicada, em 2002, os autores identificaram uma série de aquarelas falsas que chegaram ao mercado por meio do marchand.

"Hoje, quando vejo uma obra de Rugendas e sei que foi vendida por Heymann, já me acende uma luz vermelha", diz à Folha Pablo Diener. Um óleo de Rugendas foi vendido, em 2003, pela Christie's por US$ 330 mil (o equivalente a R$ 670 mil).

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