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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

A falta que Irene faz

Salvador, julho de 1969

BIA ABRAMO

TINHA CINCO ANOS em julho de 1969 e morava em Salvador, Bahia. Caetano e Gil, entre a prisão e o exílio, ocupavam a casa vizinha.

Numa espécie de porão ou garagem, com portas (ou janelas) abertas para a rua, eles ensaiavam os três últimos shows que fariam no Brasil, no Teatro Castro Alves, antes de partir para Londres. O bairro da Pituba inteiro ia acompanhar.

O pequeno apartamento em que vivíamos -com uma vista linda para o mar da Bahia- sempre estava cheio de gente: afinal, éramos uma família de paulistanos que morava num lugar de férias.

Naquele julho, foi a vez da família do lado do meu pai: minha avó, minha tia e os dois primos. A rua de casa não era asfaltada, e era 1969, portanto, nós, as crianças, tínhamos autorização para brincar sozinhas na rua.

Não lembro se minha irmã Helena e minha prima Silvana, uma com quase e a outra já com 11 anos, iam com a gente. Mas lembro que meu primo, então com oito anos, e eu começamos a assistir aos ensaios de Caetano e Gil todos os dias, no final da tarde.

Caetano e Gil eram, além de vizinhos, muito familiares para mim.

Meus irmãos mais velhos, Laís, 15, e Mario, 13, estudavam no Colégio de Aplicação da Universidade Federal da Bahia e já circulavam pelo cenário cultural de Salvador. Laís tinha um namorado que era amigo dos amigos dos tropicalistas; a cabeleira loira da minha irmã acabou fazendo uma ponta no clássico do cinema marginal "Meteorango Kid, o Herói Intergalático", de André Luiz de Oliveira.

Meu pai e minha mãe, que tinham se conhecido nos anos 50, quando militavam no Partido Socialista e circulavam entre os bares e as livrarias em torno da Biblioteca Mário de Andrade, continuavam, como se dizia então, ligados.

Eu não tinha idade para entender da missa um décimo, quanto menos um terço, mas já era grande o suficiente para ouvir música e entreouvir as conversas dos mais velhos. Meus amigos imaginários eram os Beatles. Os discos que giravam na vitrola de casa sem parar eram o "Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band" e o "Tropicália".

Os últimos shows de Caetano e Gil eram, portanto, o grande assunto naqueles dias.

Num dos ensaios, Gil perguntou se eu iria ao show, e eu disse que não. Ele manifestou alguma espécie de desapontamento, acho, e isso foi o suficiente para que o Fábio e eu começássemos a nos perguntar por que mesmo que a gente não podia assistir ao show.

O jantar em casa naquela noite deve ter sido dos demônios. Aos 5, as reivindicações acabam virando manha, birra, pampeiro.

E funcionou. Acabamos indo todos em casa (quem ficou com Marta, minha irmã de quatro meses? Minha avó? Junto com minha mãe, que amamentava?).

Da noite de 20 ou 21 de julho, algumas memórias são muito nítidas -a beleza e a destreza do então adolescente Pepeu Gomes; o final meio apoteótico que emendava o "Hino ao Senhor do Bonfim" ao hino do Esporte Clube Bahia; o enigma do verso "a Bahia já me deu/régua e compasso" de "Aquele Abraço".

No entanto, a minha lembrança mais impressionante foi ouvir "Irene" -uma canção singela, brasileira, em que Caetano diz que quer ir, ao mesmo tempo em que quer ouvir Irene dar sua risada.

O diabo é que, no "Barra 69", registro em disco daqueles dois shows, lançado só 1971, "Irene" não existe. E, para mim, eles cantaram no dia em que fui, só que exatamente como aparece no "Álbum Branco" do Caetano, que estava sendo gravado num estúdio em Salvador naquele mesmo 1969.

A música começa, alguém erra, e Gil comenta algo como: "Quando eu vi, já tinha ido [...]. Ah, meu Deus, vai", e a música recomeça.

O erro seria resultado do fato de Caetano ter começado a chorar ao cantar a música, na angústia antecipatória da despedida da família, da Bahia, do Brasil -ao menos, era essa versão que circulava nas conversas.

Passados mais de 40 anos, não tenho ideia se eu vi/ouvi alguma coisa semelhante no espetáculo do Teatro Castro Alves, se juntei o clima de despedida catártico do show com algum fragmento de história que ouvi dos mais velhos, se associei tudo isso com o clima de luto político e familiar (em setembro de 1968, três meses antes do Ato Institucional n° 5, meu avô paterno havia morrido).

"Irene", para sempre, ficou sendo a música mais triste do mundo, tão triste que era capaz de fazer um adulto chorar.

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