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Arquivo aberto

Memórias que viram histórias

O quarto Augusto

Rio de Janeiro, 1979

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

A PRIMEIRA VEZ que vi Ana Cristina Cesar foi numa reunião de jornalistas e intelectuais no apartamento de Julio Cesar Montenegro, no bairro do Humaitá, no Rio. O ano era 1977, eu tinha 21, ela 25.

O objetivo do encontro era discutir a criação de um jornal alternativo que se chamaria "Beijo", título que não lembrava em nada os dos semanários politizados e progressistas daqueles tempos, como "Movimento" ou "Versus".

Fui à reunião a convite de Ítalo Moriconi Jr., amigo de curso de letras da PUC -eu na graduação, ele na pós- e de movimento estudantil. Eu fazia parte de uma corrente que começava a ganhar posições do Partidão nos diretórios acadêmicos da universidade.

À sombra desse grupo atuava uma "organização de combate marxista-leninista" que, na definição de um amigo divertido, era "estupidamente de esquerda".

Basta dizer que rejeitávamos a palavra de ordem "pelas liberdades democráticas" por ser burguesa. Acreditávamos que a ditadura cairia e daria lugar a um governo de transição para o socialismo. E, claro, éramos pelo voto nulo nas eleições que viriam em 1978.

Nisso estávamos em sintonia com os trotskistas da Liberdade e Luta, corrente relativamente forte em São Paulo, mas insignificante no Rio. Não por acaso, naquela noite, no apartamento do Humaitá, havia uma turminha da Libelu.

A maioria daquelas pessoas era formada por ex-colaboradores da seção de cultura do semanário "Opinião", que havia sido extinto. Montenegro era o provocativo e brilhante editor que havia atraído para o jornal uma turma esperta e sofisticada, bem diferente dos padrões da esquerdona cultural.

A ideia era encarar temas recalcados no debate de esquerda, como homossexualidade e repressão nos países socialistas. Eu, que já não aguentava o dogmatismo da militância, fiquei fascinado.

As pautas do "Beijo" eram aprovadas em "assembleias" nas quais votavam os cerca de 40 "diretores" do jornal -todos que venderam assinaturas para subsidiar a empreitada, que durou sete meses. Entre eles, Rodrigo Naves, Ronaldo Brito, José Castello, Kátia Muricy, Roberto Ventura, Waltercio Caldas, Paulo Venâncio Filho e Matinas Suzuki Jr.

Os meninos falavam bastante de Ana. E as meninas também. Que era bonita, culta e talentosa.

Com o tempo, fomos nos conhecendo. Em 1978 -ano de "Muito", de Caetano Veloso, e de "O Astro", de Janete Clair, que ela amava- começamos um namoro. Ela foi cursar o mestrado de Comunicação na UFRJ, com Heloisa Buarque de Hollanda, e me incentivou a fazer o mesmo.

Às vezes me sentia um bárbaro perto daquela moça de olhos azuis, educação protestante, angustiada, mas divertida e sedutora, que recitava Mallarmé em francês, lia Jack Kerouac e gostava de Roberto Carlos.

Entre licenças poéticas, ficamos até 1980, quando ela foi a Essex fazer uma pós em tradução. Morávamos em Copacabana, íamos à praia em Ipanema, passávamos fins de semana no sítio da família dela, em Penedo, ou na casa de Heloisa Buarque, em Búzios.

Em 1979, ela lançou seu primeiro livro, "Cenas de Abril", numa fina edição de autor. Guardo o exemplar com a dedicatória, em tinta rosa, já borrada: "Com doçura, Ana C." Dois poemas aludiam à nossa convivência. Um deles dizia: "Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... Ai que enjoo me dá o açúcar do desejo".

Quarto Augusto?! Não gostei muito. O outro foi escrito por ocasião do Natal de 1978, quando ela foi me encontrar no apartamento de meus pais. Tinha comprado um sapato novo, "um bico fino que anda feio" e que a levava "indesejável pra perto das botas pretas".

Ana passou um ano na Inglaterra e voltou de cabelo curtinho, gostando do Police. Não retomamos. Nos encontrávamos de vez em quando pelo Rio.

Uma noite, num bar do Leblon, alguém disse que ela tinha entrado no mar à noite, numa suposta tentativa de suicídio. Pensei em visitá-la, mas a situação parecia complicada. Resolvi esperar.

Em 29 de outubro de 1983, ela se foi. No próximo dia 2 de junho Ana C. faria 60 anos. Como seria?

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