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Arte ou estandarte?

SÉRGIO DÁVILA

A pergunta, feita pela revista francesa "L'Express", não é respondida pela exposição "Entrelacs" (Entrelaços), em cartaz até 29/4 no segundo andar do museu Jeu de Paume, em Paris. Tida como a mais completa retrospectiva de fotos, vídeos e, vá lá, posts e tuítes do artista chinês Ai Weiwei, a mostra mais levanta questões do que as tenta elucidar.

Uma delas: ele é um artista ou um provocador? Ambos comparecem na mostra, na já famosa série "Estudos de Perspectiva" (1995-2003). A pretexto de voltar a um antigo exercício de aprendizes de pintura, aplicado às fotos que ele tira sempre do mesmo ângulo e com a mesma distância entre a lente e sua mão, Ai Weiwei mostra o dedo indicador para diversos símbolos do Ocidente e do Oriente.

Lá está a praça Tiananmen, a primeira da série, feita em 1995, seis anos depois de a ditadura comunista ter sufocado ali um movimento de oposição.

Mas também estão lá a Casa Branca, o Reichstag, o Parlamento britânico, as Torres Gêmeas pré-2001 e a torre Eiffel.

Ai Weiwei manda todos à merda igualmente, sem outro critério aparente que não este: todos são igualmente criticáveis, poupar qualquer um seria hipocrisia.

"Essas imagens falam mais por justaposição do que por composição", escreve o curador Philip Tinari no catálogo da mostra. "Uma seleção ou arranjo específicos podem ser feitos para dizer coisas específicas a diferentes públicos."

TWITTER Outra pergunta que a exposição deixa sem resposta: blogar e tuitar podem ser considerados atos artísticos? Os curadores reproduzem dois dias inteiros da conta de Ai Weiwei no Twitter, do bom-dia inicial ao boa-noite, passando por frases de terceiros, como "Professor Ai, o senhor poderia me recomendar alguns livros de arte para iniciantes?".

Citando Ferreira Gullar, será arte? Estaremos -ou os curadores- sendo condescendentes com um artista porque ele está em semiprisão domiciliar, porque tem sido perseguido e volta e meia é chamado para "tomar chá", segundo a metáfora usada na internet para os interrogatórios a que são submetidos os críticos do regime?

Ao mesmo tempo, estaremos fechando os olhos para as incongruências de um artista que já colaborou com o governo tão recentemente quanto nos Jogos Olímpicos de 2008? Na ocasião, Ai Weiwei foi convidado a participar do projeto do Ninho de Pássaro, o estádio que sediou a abertura e o encerramento dos Jogos de Pequim. As cerimônias virariam símbolo da onda de boa vontade do Ocidente, na qual de certa maneira a ditadura comunista surfa até hoje.

É certo que o próprio Ai Weiwei abandonaria o projeto, por discordar de seu uso político -na exposição, o protesto aparece na série de fotos em que ele retrata a celeridade da construção e o secretismo que a cercou. Ele o aceitou porque gosta de design, diria depois, e o abandonou por perceber que a obra serviria à propaganda comunista. Mas o que mais ele esperava?

Outra questão: quando fotografa e divulga na rede o terremoto de 2008, que matou centenas de milhares de pessoas e foi escondido pelo governo, ele faz arte ou fotojornalismo? Reflexão ou denúncia? São perguntas pertinentes, que continuam sem resposta.

WARHOL Duas fotos ou série de imagens, no entanto, colocam Ai Weiwei no patamar do artista americano Andy Warhol (1928-1987). Ele próprio foi questionado a vida inteira sobre o tipo de arte que fazia e se o que fazia era mesmo arte.

A primeira é a de mais impacto da exposição "Entrelacs". Batizada simplesmente de "Junho de 1994", mostra em primeiro plano a artista plástica Lu Qing encostada numa grade de ferro na mesma praça Tiananmen. Ao fundo, uma turista chinesa é fotografada, tendo por sua vez ao fundo o retrato oficial de Mao Tsé-tung (que ganhou cores num dos quadros mais famosos de Warhol).

Ao lado da imagem do líder, veem-se estandartes com os slogans oficiais "Vida Longa à República Popular da China" e "Vida Longa à Unidade do Mundo". Completam a cena dois soldados que fazem a ronda e um popular que acaba de estacionar sua lambreta e traz na garupa as muletas de sua mulher.

Seria uma cena típica da China e daquele lugar, não fosse por um detalhe: Lu Qing, então já mulher de Ai Weiwei, levanta a saia. A ação inusitada lembra Marilyn Monroe -não a do quadro de

Warhol, mas a da clássica cena da saia esvoaçante em "O Pecado Mora ao Lado" (1955), de Billy Wilder.

A diferença em relação ao filme, porém, é que na foto nada que está ao redor combina com a ação. Tudo está em harmonia, menos a Marilyn de Ai Weiwei. O casal acabava de voltar de uma temporada no East Village nova-iorquino, e a foto é uma espécie de carta de intenções do que o artista faria depois. Ela antecede em semanas o início da série do dedo.

A outra imagem é o tríptico "Derrubando uma Urna da Dinastia Han" (1995), em que Ai Weiwei solta no ar o que aparenta ser o objeto descrito no título, que se vê na altura de seus joelhos na segunda foto e se espatifa no chão na terceira. Na da Marilyn, ele parece dizer que voltou para contaminar a cena artística local, sancionada ou sufocada pelo governo, com o que apreendeu no Ocidente.

Na da urna, vai mais fundo: quer romper não só com o partido, mas com 2.000 anos de história. A dinastia Han (206 a.C.-220) é tida como a era de ouro chinesa, e a maioria da população orgulha-se de se dizer descendente dela, escreve Jinghao Zhou em "Remaking China's Public Philosophy for the 21st Century" (Praeger, 2003).

É uma proposta ambiciosa, e Ai Weiwei vem tentando cumpri-la desde então.

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