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Música

O caipira urbano

Os 50 anos do primeiro álbum de Bob Dylan

RESUMO Lançado em 19 de março de 1962, um ano depois de Robert Zimmerman desembarcar, aos 20, de um trem de carga em Nova York, "Bob Dylan" já trazia indícios da visão original do artista. Hoje, o disco ajuda a entender o homem que, passados 50 anos, conservou o mistério. Leia mais sobre Bob Dylan na "Serafina".

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ED VULLIAMY
tradução CLARA ALLAIN

UM RITMO ACELERADO de violão é seguido pelo verso "I don't know why I love you like I do" [não sei por que eu te amo como te amo], cantado entre uma risada oca e um grito de dor. Um minuto e 37 segundos depois, acabou. Lado A, faixa um do primeiro álbum de Bob Dylan, o mais esquivo, talentoso e influente cantor e poeta americano do século 20.

Em seguida temos um "talkin' blues"1 clássico que soa como obra de um artista experiente, mas expressa a emoção de um jovem ao chegar a Nova York.

Depois, a voz, mais veemente, se intensifica numa dolorosa terceira faixa, que toca cada nervo exposto do ouvinte com força algo excessiva -um "spiritual"2 intitulado "In My Time of Dyin'", no qual a tampa do batom da namorada do cantor é usada para tentar imitar o "slide"3 do mago do blues Robert Johnson.

Intitulado "Bob Dylan" [Vox Music, R$ 39,90], o álbum foi lançado há meio século, em 19 de março de 1962, por um jovem de 20 anos do Minnesota que havia chegado a Manhattan no ano anterior, num trem de carga.

Levou dois meses para ir além da Times Square e tentar a sorte em locais como "um estranho bar de cervejas e vinhos na 3rd Street [...] hoje chamado Café Bizarre", como Dylan recordaria mais tarde. "Era frequentado principalmente por operários que davam risada, xingavam, comiam carne, falavam de mulheres. Caça-talentos artísticos", escreve ele, "não vão a buracos como aquele".

Dylan por fim chegou ao Greenwich Village com uma ambição ferrenha que combinava com a fermentação criativa do bairro -"Não via a hora de ser visto, de impressionar pessoas importantes, de aprender", escreve Robert Shelton, o crítico musical que se tornou seu biógrafo.

Na cidade que Dylan descreveu como "misteriosa", mas "capital do mundo", ele se enfiou pelas portas de cafés e clubes folk: Commons, Wha?, The Gaslight -e Gerde's Folk City. Dylan escreveria mais tarde: "Eu ia a esses lugares para ver os cantores que já tinha ouvido em disco: Dave Van Ronk, Peggy Seeger, Ed McCurdy, Sonny Terry e Brownie McGhee".

Seu primeiro álbum foi lançado no mesmo ano em que os Beatles gravaram "Love me Do"; Jimi Hendrix ainda estava prestando serviço militar na 101ª Divisão Aerotransportada; Frank Sinatra gravou um álbum com Count Basie e Dmitri Shostakovich apresentou pela primeira vez sua 13ª Sinfonia -ele ainda criaria mais duas e viveria por mais 13 anos.

"Embora só tenha 20 anos", diz uma resenha no "New York Times", "Dylan é um dos cantores de estilo mais particular a se apresentar numa casa de espetáculos de Manhattan em meses".

Embora 50 anos tenham se passado, Dylan conservou seu mistério, o que é ainda mais notável quando se considera que já escreveu um livro que é visto como uma autobiografia íntima, "Crônicas Vol. 1" [trad. Lucia Brito, Planeta, 323 págs., esgotado].

DETERMINAÇÃO A ex-namorada Suze Rotolo -com quem Dylan aparece de braços dados na foto da capa do segundo álbum, "The Freewheelin' Bob Dylan", de 1963- conta em suas memórias a que ponto chegava a determinação dele em permanecer misterioso naquela época: Dylan contou a ela uma história fantasiosa de que tinha sido abandonado no Novo México quando era criança.

Suze desconfiava de seu "sobrenome galês" e arrancou dele o verdadeiro, Zimmerman, no apartamento que acabariam dividindo na West 4th Street (ainda que, depois de assistirem a "O Sol É para Todos", ela o tenha apelidado de Boo Radley).

Mas "Crônicas", lançado em 2004, pelo menos nos permite citar o próprio Dylan, depois de décadas de respostas esquivas e charadas com as quais ele confundiu entrevistadores.

Podemos ler em primeira mão o seu relato de como conheceu o homem que foi a maior inspiração de seu primeiro álbum: o andarilho Woody Guthrie, o pai e a consciência política do folk americano.

Nada no álbum foi escrito por Guthrie, mas as canções tradicionais são cantadas como ele as poderia ter cantado. Dylan se recorda de ter comprado cigarros Raleigh para Guthrie fumar no hospital e de cantar "Tom Joad" para o compositor da canção nas longas tardes que passou ao seu lado, em seu leito de morte.

Apenas duas canções do álbum foram escritas por Dylan: "Talkin' New York" e "Song to Woody". A primeira é uma adaptação de um "talkin' blues" de Guthrie e a segunda é uma homenagem a ele.

A explicação de Dylan desarma pela franqueza: "Não sei dizer quando me ocorreu escrever as minhas próprias canções. Para definir como eu me sentia no mundo, eu não poderia criar nada comparável, nem de longe, às letras das canções folk que eu estava cantando [...]. As canções folk tocavam na minha cabeça. Elas são a história que está por trás."

SUJINHO Tocando no Folk City, Dylan conquistou admiradores e invejosos adversários. Joan Baez se recordaria: "Ele parecia um caipira urbano [...]. Saltando de um pé para o outro, mais lembrava um anão ao lado do violão [...]. Ia cuspindo as palavras de suas canções. Elas eram originais e novas, embora fossem de uma cruas e até ásperas. Ele era absurdo, novo e sujinho além da conta, mas cativante."

Mas Dylan não conseguiu converter seu sucesso em clubes num contrato de gravação: foi rejeitado pela Elektra, pela Folkways e pela Vanguard. Então conheceu John Hammond durante um ensaio num apartamento alugado por Mimi Fariña, irmã de Joan Baez, e seu marido, Richard.

Hammond foi o gênio que produziu o primeiro álbum de Dylan, acrescentando o jovem cantor à lista de nomes que cultivou e que inclui Billie Holiday, Charlie Christian, Bessie Smith e Count Basie.

Em novembro de 1961, Hammond levou seu novo talento ao estúdio A da Columbia Records, na Seventh Avenue.

"Contratei Dylan na hora", Hammond lembrou certa vez. "Fizemos nosso primeiro álbum quase imediatamente. Tocava violão de maneira tosca, e estou sendo caridoso ao dizer isso, e como gaitista era apenas sofrível, mas tinha um bom som, uma ideia e um ponto de vista. Estava muito desencantado com o sistema social. Eu o incentivei a colocar toda a hostilidade dele na música, achei que desse jeito poderíamos chegar ao verdadeiro Bob Dylan."

O instinto germinal de Dylan pela música, pelo folk e pelo blues era tão forte que algumas das canções foram gravadas em apenas dois takes. Os únicos problemas aconteciam quando Dylan, perto demais do microfone, fazia pipocar a letra P ao cantar.

O impacto imediato e espantoso do álbum vem do contraste entre a imagem do rapaz de boina, séria, porém leve, e os sentimentos profundos ao cantar o amor, a raiva, a tristeza e certa fixação pela morte. A faixa central do álbum é "Fixin' to Die", cantada como se Dylan implorasse pela vida que estava prestes a perder -assim é a interpretação de Dylan das intenções do compositor, o grande mestre do Delta blues Booker T Washington ("Bukka") White.

E o álbum prossegue: um violão mais leve em "Baby Let me Follow You Down", um anúncio das baladas poderosas que estavam por vir, remetendo definitivamente a "House of the Rising Sun", do cancioneiro americano, e "Freight Train Blues", de Elizabeth Cotten.

Nesta última, o que chama a atenção não é só a poesia popular dos trens americanos e o assobio de ferro serpenteando pela eternidade, mas o reflexo do próprio Dylan: "Vi e ouvi trens desde a primeira infância. A visão e o som deles sempre me fez sentir segurança."

HUMOR Como não poderia deixar de ser, também há humor no álbum. Joan Baez, namorada de Dylan no período imediatamente posterior ao álbum, escreveu que o senso de humor dele "era irônico, cifrado e esplêndido".

O britânico Michael Gray, muito respeitado por seus escritos sobre Dylan, propõe uma discussão interessante ao afirmar que o valor do álbum não está só em ter mostrado "mais que alguns indícios de uma visão altamente particular", mas que também "funcionou como corretivo ótimo para Greenwich Village: no contexto do que estava acontecendo na época -a cultura folk americana sendo quase exterminada, enquanto um culto 'folk' estagnado era implantado como que para ocupar seu lugar, o álbum era o oposto de afetado".

Em "Crônicas", Dylan se recorda dos livros que pegava das estantes de outras pessoas e devorava durante o período em que criou o disco, livros que iluminariam os álbuns seguintes: Shelley, Poe, Faulkner, Gogol, "The White Goddess" de Robert Graves, que Dylan conheceria mais tarde em Londres; "Balzac é hilário", escreve Dylan. E há seu "fascínio mórbido" pelos escritos de Von Clausewitz sobre a guerra.

Esses livros tiveram seu lugar na miríade de influências do que estaria por vir -na verdade, a partir do momento que Dylan embarcou no caminho que vai de "Bob Dylan" em diante, um bom tempo se passaria até que ele retornasse ao álbum no repertório básico de seus shows.

"Às vezes, você só quer fazer as coisas do seu jeito, quer ver com os seus próprios olhos o que está por trás da cortina enevoada", ele escreveu. "Você precisa conhecer e entender uma coisa, e depois superar aquele vernáculo."

Meio século atrás, contudo, o vernáculo tinha narrativa e poesia próprias. Na resenha que escreveu para o "New York Times", porém, Robert Shelton observou que, a despeito de momentos de "melodrama que erra o alvo", "a abordagem altamente personalizada de Dylan à canção folk ainda está em evolução."

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Seu primeiro álbum foi lançado no mesmo ano em que os Beatles gravaram "Love me Do"; Jimi Hendrix ainda estava prestando serviço militar na 101ª Divisão Aerotransportada

Dylan conquistou admiradores e invejosos adversários. Joan Baez se recordaria: "Ele parecia um caipira urbano [...]. Saltando de um pé para o outro, mais lembrava um anão com o violão"

Notas
1. Talking blues: blues falado, difundido por cantores como Woody Guthrie.
2. Spiritual: canções religiosas típicas do sul dos EUA, mesclando o hinário protestante à música africana.
3. Slide: tubo de metal usado para produzir distorções no som do violão.

Texto publicado originalmente no jornal britânico "The Guardian".

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