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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Um infiltrado nas letras

Rio de Janeiro, 1968

ANTONIO CARLOS VIANA

SÃO MUITAS as definições para 1968. A minha é a de um ano que terminou antes da hora.

Foi o ano em que resolvi deixar minha cidade, Aracaju, e ir tentar a vida no Rio de Janeiro, com o sonho de fazer uma especialização em literatura brasileira.

E lá fui eu num janeiro torrando no Nordeste e torrando ainda mais na cidade aonde cheguei dois dias depois, num ônibus malcheiroso, com apenas uma mala de roupa e alguns livros.

A primeira coisa que fiz foi procurar um colégio onde dar aulas. Não foi difícil. Difícil foi enfrentar alunos que riam de tudo que eu falava. O sotaque nordestino ainda não tinha o charme que foi adquirindo ao longo dos anos com os novos e velhos baianos.

Depois de assegurar o pouco pão dos dias por vir, fui à Faculdade de Letras da UFRJ falar com aquele que era então o nome máximo dos estudos literários: Afrânio Coutinho. Ele me recebeu sem nenhuma cerimônia e disse que eu fosse assistindo às aulas que achasse importantes para desenvolver o meu projeto, que na época não era projeto nenhum.

A faculdade ficava na avenida Chile, bem no centro da cidade. A oferta de bons cursos era tamanha que fiquei perdido. Era a época de ouro das letras na UFRJ: Eduardo Portella, Cleonice Berardinelli, Marlene Castro Correia, Heloísa Buarque de Holanda, Célia Terezinha (foi com ela que descobri João Cabral), Ana Maria Machado (ainda não era a escritora de livros infantojuvenis de hoje), Dirce Riedel e tantos outros mais.

Minha sede por conhecimento era tanta que eu saía de uma sala e entrava em outra imediatamente. Estava estupefato com o tamanho do saber daquela gente. Na minha graduação, nunca tinha ouvido falar em teoria literária. Foi ali que ouvi as primeiras lições assustadoras do estruturalismo.

O semestre foi andando, e eu tentando acompanhar o ritmo daquela gente que parecia acordar e dormir com os livros. Mas eis que, um belo dia, uma ex-colega de Aracaju que eu havia reencontrado pelos corredores me chamou num canto e me entregou uma carta. Estava escrita em francês, até hoje não sei por quê. Ela, que era muito risonha, estava séria, muito séria. Olhava para o chão.

Eu já havia percebido que, quando entrava em qualquer sala, as pessoas se calavam na hora, até o professor. E ficavam me olhando de um jeito estranho.

A carta dizia que corria o boato de que eu era um agente infiltrado do SNI (Serviço Nacional de Informações) e que assistia a todas as aulas para denunciar os subversivos.

Ao terminar de ler a carta, fiquei perdido. Para mim, o ano terminava ali, e com ele iam todos os meus sonhos de continuar estudando com aqueles mestres. Minha ex-colega falou que eu tomasse cuidado, que estavam planejando me sequestrar para me submeterem a um interrogatório e descobrirem na verdade quem eu era.

Havia uma jovem alta, bela, que era da linha frente nas assembleias do DCE, a que eu assistia vez ou outra só para inteirar da situação do país. Agora eu entendia por que ela, sempre que passava por mim, me olhava de forma tão insistente.

Como eu era muito magro, pobre e feio, descartei qualquer ideia de paquera. Com a carta, estava tudo explicado.

Ao acordar no outro dia, várias ideias me passaram pela cabeça. A primeira foi abandonar de vez as aulas, mas isso só faria aumentar as suspeitas. Ou então procurar os dirigentes do DCE e me explicar. Achei pior ainda, tal a minha timidez. Conversei com minha ex-colega e ela me apaziguou. Disse que ia conversar com algumas pessoas e ver se desfazia o mal-entendido.

Naqueles anos, qualquer pessoa podia ser suspeita de ser um informante do SNI. E eu tinha uma característica bem suspeita: entrar calado e sair calado de todas as aulas. Nunca abria a boca para fazer perguntas ou comentários. Primeiro por timidez. Segundo por vergonha do sotaque. Terceiro, porque meu saber era curto mesmo e tinha medo de falar besteira.

Foi com certa tristeza que me afastei de quase todas as aulas e fiquei assistindo só àquelas cujos professores nunca me lançaram olhares hostis. Quando abriram as inscrições para o mestrado, me inscrevi logo e fui admitido.

De "agente inflitrado do SNI" passei a ser simplesmente um aluno regular de um curso que nem cheguei a terminar ali. Fui terminá-lo dez anos depois, na PUC do Rio Grande do Sul. Foi nesse intervalo que me descobri contista, mas esse episódio nunca me rendeu um reles continho.

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