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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

A trama do casamento

JEFFREY EUGENIDES
tradução CAETANO GALINDO

Aí, numa manhã de domingo, antes das férias de inverno, o namorado de Abby, Whitney, materializou-se na mesa da cozinha do apartamento delas, lendo um negócio chamado "Gramatologia".

Quando Madeleine perguntou sobre o que era o livro, Whitney lhe deu a entender que a ideia de um livro ser "sobre" alguma coisa era exatamente o que aquele livro atacava, e que, se ele era "sobre" alguma coisa, então, era sobre a necessidade de parar de pensar que os livros são sobre coisas. Madeleine disse que ia fazer café. Whitney perguntou se ela fazia para ele, também.

A universidade não era como o mundo real. No mundo real as pessoas citavam autores com base no quanto eles eram conhecidos. Na universidade, as pessoas citavam com base na obscuridade dos autores.

Assim, nas semanas que se seguiram a essa conversa com Whitney, Madeleine começou a ouvir as pessoas dizerem "Derrida". Ela as ouviu dizer "Lyotard" e "Foucault" e "Deleuze" e "Baudrillard". O fato de que a maioria dessas pessoas eram aquelas que ela instintivamente recusava -garotos de classe média alta que usavam Doc Martens e símbolos anarquistas- deixava Madeleine com dúvidas sobre o valor da sua empolgação.

Mas logo ela viu David Koppel, um poeta inteligente e talentoso, também lendo Derrida. E Pookie Ames, que fazia triagem de textos para "The Paris Review" e de quem Madeleine gostava, estava cursando uma disciplina do professor Zipperstein.

Madeleine sempre teve um fraco por professores pomposos, gente como Sears Jayne, que fazia grandes cenas em sala de aula, recitando Hart Crane ou Anne Sexton com uma voz embargada. Whitney agia como se Jayne fosse uma piada. Madeleine não concordava.

Mas depois de três anos intensos de disciplinas de literatura, Madeleine não tinha nada que se pudesse chamar de uma metodologia sólida para aplicar ao que lia. Ao invés disso, tinha uma forma vaga, assistemática, de falar sobre livros. Ela ficava com vergonha de ouvir as coisas que as pessoas diziam em sala de aula. E as coisas que ela dizia. Parece que. Foi interessante o jeito de Proust. Eu gostei de como Faulkner.

E quando Olivia, que era alta e magra, com um nariz comprido e aristocrático como o de um saluki, chegou em casa um dia carregando "Gramatologia", Madeleine soube que o que tinha sido marginal era agora "mainstream".

"Como é que é esse livro?"

"Você não leu?"

"Será que eu ia perguntar se tivesse lido?"

Olivia fungou. "Mas alguém está de mau humor hoje, hein?"

"Desculpa."

"Só de sacanagem. É superlegal. Derrida é o meu deus absoluto!"

Quase da noite para o dia ficou ridículo ler autores como Cheever ou Updike, que escreviam sobre o mundo suburbano em que Madeleine e a maioria dos seus amigos tinha crescido, em favor de se ler o Marquês de Sade, que escrevia sobre a defloração anal de virgens na França do século 18.

O motivo de Sade ser preferível era que as suas cenas sexuais chocantes não tratavam de sexo, mas sim de política. Elas eram portanto anti-imperialistas, antiburguesas, antipatriarcais e antitudo que uma jovem feminista inteligente deveria ser contra.

Até o seu terceiro ano de universidade, Madeleine continuou salutarmente frequentando disciplinas como Fantasia Vitoriana: de "Phantastes" a "The water-babies", mas no último ano ela não conseguia mais ignorar o contraste entre o pessoal duro e sonolento lá com ela no seminário sobre "Beowulf" e os descolados da outra sala lendo Maurice Blanchot.

Ir para a universidade nos pecuniários anos 1980 tinha uma certa falta de radicalismo. A semiótica era a primeira coisa que tinha jeito de revolução. Ela traçava um limite; criava eleitos; era sofisticada e europeia; lidava com temas provocantes, com tortura, sadismo, hermafroditismo -com sexo e poder.

Madeleine sempre tinha sido popular na escola. Anos sendo popular tinham lhe dado a capacidade automática de separar o legal do que não era legal, até dentro de subgrupos, como o departamento de inglês, onde o conceito de legal parecia não ter lá muita validade.

Se o teatro da Restauração estava te deixando deprimida, se escandir Wordsworth estava fazendo você se sentir velhusca e manchada de tinta, havia outra opção. Você podia fugir de K. McCall Saunders e da velha Nova Crítica. Você podia desertar para o novo império de Derrida e Eco. Você podia se inscrever em Semiótica 211 e descobrir do que todo mundo estava falando tanto.

Semiótica 211 era limitada a dez alunos. Desses dez, oito tinham feito Introdução à Teoria Semiótica. Isso estava visualmente claro no primeiro encontro da disciplina. Recostadas em volta da mesa de reunião, quando Madeleine entrou na sala vinda do clima de inverno lá de fora, estavam oito pessoas com camisetas pretas e jeans pretos rasgados. Alguns deles tinham cortado a navalha as golas ou as mangas das camisetas.

Havia algo meio medonho no rosto de um dos caras -era como o rosto de um bebê que tivesse suíças- e Madeleine levou um minuto inteiro para perceber que ele tinha raspado as sobrancelhas.

Todo mundo na sala tinha uma cara tão espectral que a natural aparência saudável de Madeleine parecia suspeita, como um voto em Reagan. Ela ficou aliviada, portanto, quando um sujeito grandão com uma jaqueta estofada e botas de neve deu as caras e pegou a cadeira vaga ao lado dela. Ele estava com uma xícara de café para viagem.

Zipperstein pediu que os estudantes se apresentassem e explicassem por que tinham se matriculado no seminário.

O menino sem sobrancelhas falou primeiro. "Hum, vejamos. A bem da verdade eu estou achando meio difícil me apresentar, porque toda essa ideia de apresentações sociais é tão problemática. Assim, se eu disser pra vocês que o meu nome é Thurston Meems e que eu cresci em Stamford, Connecticut, vocês vão ficar sabendo quem eu sou? Oquei, o meu nome é Thurston e eu sou de Stamford, Connecticut. Eu estou cursando essa disciplina porque eu li 'Gramatologia' no verão e aquilo me deixou alucinado."

Quando foi a vez do cara ao lado de Madeleine, ele disse numa voz tranquila que seguia dois cursos (biologia e filosofia) e nunca tinha feito um curso de semiótica, que os pais dele tinham lhe dado o nome de Leonard, que sempre lhe pareceu bem conveniente ter um nome, especialmente quando te chamavam para jantar, e que se alguém quisesse chamá-lo de Leonard ele ia atender.

SOBRE O TEXTO A série de trechos de livros que a "Ilustríssima" publica em primeira mão apresenta parte do primeiro capítulo de "A Trama do Casamento", do escritor americano Jeffrey Eugenides, que sai em maio pela Companhia das Letras. No começo dos anos 1980, estudantes da Universidade Brown vivem um triângulo amoroso. Eugenides recebeu o Prêmio Pulitzer de literatura em 2003 por "Middlesex" (Rocco).

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