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A arca russa

O que Isaac Bábel tem a ver com o "King Kong"

RESUMO Antologia de contos e crônica bem-humorada da formação de uma estudante de letras nos EUA renovam a leitura da ficção russa no Brasil e no mundo. Livro de Boris Schnaiderman descreve a censura enfrentada por escritores no período soviético, quando havia um enorme depósito com todas as obras banidas.

PAULO WERNECK

Ilustração ANDRÉS SANDOVAL

O FOLCLORE UZBEQUE registra uma espécie de versão do mito grego da fênix: o qaqnus, ave cinzenta que incendeia o ninho construído durante a vida inteira para que das cinzas nasça um filhote, que por sua vez constrói um novo ninho.

Da mesma forma, disse o crítico Vahid Abdullayev, todo escritor passa a vida recolhendo lenha com a qual possa queimar a geração anterior de escritores.

Narrada pela turco-americana Elif Batuman em seu recém-lançado  "Os Possessos - Aventuras com os Livros Russos e Seus Leitores" [trad. Luis Reyes Gil, Leya, 344 págs., R$ 44,90] , a história poderia se aplicar às sucessivas gerações de leitores que renovam modismos literários e queimam as gerações anteriores. Daqui a 30 anos, nossos filhos estarão lendo Roberto Bolaño?

"Queimar" um modo tradicional de ler os russos parece ser o propósito do divertido livro de Batuman, espécie de crônica de seus estudos na Universidade Stanford, na Califórnia. O valor de "Os Possessos" não está na densidade crítica -que decididamente falta a Batuman-, mas na forma totalmente pessoal e anárquica com que apresenta as letras russas.

A capa da edição americana, feita pelo cartunista Roz Chast, resume o propósito da autora: retratar a experiência acadêmica com o humor dos cartuns e textos da revista "The New Yorker", para a qual ela e Chast colaboram. Trata-se de um livro de divulgação cultural, gênero que faria tão bem aos estudos literários quanto a divulgação científica faz para a ciência.

Em "Bábel na Califórnia", ao mesmo tempo que apresenta vida e obra de Isaac Bábel, ela narra a saia justa em que se meteu ao ciceronear a viúva do escritor e sua filha Lydia, que foram a Stanford para um simpósio sobre ele. Depressiva, Lydia abordava à queima-roupa especialistas na obra do pai: "É verdade que você não gosta de mim?". Durante um debate, deixou perplexo um grupo de especialistas ávidos por saber o paradeiro de documentos extraviados do autor: "Não sei, talvez estejam debaixo da minha cama". O livro é um inventário de histórias da vida acadêmica tal como ela é: professores estranhos, colegas ciumentos, teses malucas, discussões bizantinas, congressos improváveis. Galhofeira sem ser antiacadêmica, Batuman entra na própria brincadeira e expõe as hipóteses furadas que formula (Teria Tolstói sido assassinado?), as tentativas de forçar uma interpretação -e a alegria intelectual de acertar na mosca de vez em quando.

Ela tenta, por exemplo, estabelecer um nexo entre Bábel e Merian Caldwell Cooper. Antes de se tornar o criador e produtor de um ícone da cultura americana -"King Kong"-, Cooper foi piloto da Força Aérea dos Estados Unidos na campanha polonesa de 1920. Quase morreu quando seu avião foi abatido e ele caiu nas mãos dos brutais cossacos da Cavalaria Vermelha, na qual o escritor serviu. Cooper disse ter sido salvo por um "bolchevique inominado que falava inglês" com quem teve uma "conversa interminável".

Na hipótese de Batuman, só podia ser Bábel. Ela se pôs a pesquisar o depoimento do piloto, releu passagens do "Diário de 1920" de Bábel e, com a ajuda de seu orientador, localizou em Paris um cartaz italiano antibolchevique que mostra um enorme macaco sobre o mapa da Europa, brandindo uma foice e um martelo. Para ela, estava clara a origem do gorila encarapitado no Empire State Building.

Além da vida em Stanford, Batuman narra suas viagens à Rússia e ao Uzbequistão, antiga república soviética. Em Iásnaia Poliana, a mítica propriedade rural onde Tolstói vivia com a família, passou quatro dias vestida com o conjunto de moletom com que viajou, pois a companhia aérea extraviou sua mala. Até que ela fosse restituída, os demais participantes do congresso tomaram Batuman por uma tolstoiana, fanática da doutrina fundada pelo escritor.

"Os Possessos" narra a trajetória de uma leitora apaixonada, incapaz de escrever sobre suas leituras sem implicar sua própria vida nelas. Essa definição, curiosamente, serviria para descrever com exatidão as memórias de leitura do maior nome das letras russas no Brasil, Boris Schnaiderman.

 "Os Escombros e o Mito" [Companhia das Letras, 312 págs., R$ 49] , publicado em 1997, ajuda explicar, em parte, por que a literatura russa tornou-se essa mania mundial. Há explicações locais (como a formação de uma nova geração de tradutores brasileiros) e globais (como a recente imantação da obra de Tolstói pelo vegetarianismo, os direitos dos animais e outras causas).

A principal delas, porém, é certamente histórica: a abertura cultural que ocorreu ao fim da União Soviética, em 1991, obrigou os russos e o mundo inteiro a redescobrir radicalmente a literatura do país.

É o que faz Schnaiderman em "Os Escombros e o Mito". Este livro extraordinário e ainda pouco lido narra o desmonte da União Soviética, pelo ponto de vista cultural, a partir de algumas viagens que o autor fez à Inglaterra e à Alemanha no período da "glasnost" (transparência), política implementada pelo dirigente Mikhail Gorbatchov que levaria ao fim da URSS.

Nessas viagens, um Schnaiderman perplexo e já aposentado vai tomando conhecimento da infinidade de materiais inéditos de seus escritores preferidos. Como se um especialista em literatura brasileira descobrisse, aos 70 anos de idade, seis romances inéditos de Guimarães Rosa e livros inteiros de Carlos Drummond de Andrade.

Schnaiderman narra o impacto pessoal que teve com a abertura do "spietzkhran", o "depósito especial" stalinista que abrigava mais de 300 mil livros, 560 mil revistas e pelo menos 1 milhão de jornais que recebiam do regime o carimbo "khranit vietchno", ou seja, "guardar para a eternidade".

O Kremlin mandava guardar cuidadosamente ali um exemplar de cada uma das obras proibidas -literárias, políticas, teológicas e até mesmo clássicas, como "Os Demônios", de Dostoiévski (anteriormente traduzido como "Os Possessos" -inspirando, aliás, o título do livro de Batuman). Os originais do romance "O Mestre e Margarida", de Mikhail Bulgákov, foram queimados pelo autor ao ser libertado da prisão -mas acabariam salvos pelas mãos da própria KGB que, embora perseguisse o escritor, conservou uma cópia datilografada dos manuscritos.

Mesma sorte não teve Bábel. Após gozar de grande popularidade, caiu em desgraça, deixou de ser publicado, foi banido das enciclopédias literárias e, por fim, foi preso, no final dos anos 1930. Morreu entre 1940 e 1941, sem que se conheçam as razões de sua condenação. Foram destruídos milhares de originais, inclusive os de um novo romance. Por isso o alvoroço dos participantes do congresso em Stanford quando Lydia Bábel afirmou que os papéis talvez estivessem debaixo de sua cama.

A abertura dos documentos do "depósito especial", narrada com emoção por Schnaiderman, mostra como a redescoberta da literatura russa foi uma necessidade histórica que acabou desaguando no surto tradutório que o Brasil vive desde 2001, quando Paulo Bezerra publicou sua tradução de "Crime e Castigo", de Dostoiévski.

Quem crava a data é Bruno Barretto Gomide, especialista na recepção da literatura russa no Brasil e organizador da recente "Nova Antologia do Conto Russo - 1792-1988" [vários tradutores, ed. 34, 648 págs., R$ 74]. A editora lançou os contos em e-book, vendidos separadamente de R$ 0,99 a R$ 2,99, e uma versão, também eletrônica com 20 dos 40 contos, por R$ 24,90.

De forma diferente de "Os Possessos", o livro também é uma porta de entrada para a ficção russa. A ambição formativa da antologia é confirmada pela dedicatória: "A Boris Schnaiderman, por seu trabalho em prol da divulgação da literatura russa no Brasil".

Curiosamente, Gomide optou por não escolher os contos propriamente "antológicos" de cada autor (como "O Capote", de Gógol, ou "A Dama do Cachorrinho", de Tchékhov). Reuniu textos menos conhecidos e ausentes em edições brasileiras. Bábel, por exemplo, comparece com "Guy de Maupassant", conto que não pertence a "O Exército de Cavalaria" nem a "Contos de Odessa", seus dois ciclos narrativos mais conhecidos.

Há também autores mais recentes e/ou menos conhecidos no Brasil, como Andrei Platónov (1899-51) e Serguei Dovlátov (1941-90). Proibido de publicar na União Soviética, Dovlátov fugiu em 1978 para os EUA, onde passou a publicar na "New Yorker" (leia o conto "A Mala", que a "Ilustríssima" publicou com exclusividade em novembro, em folha.com/ilustrissima).

Valeria a pena ler os três livros ao mesmo tempo: a antologia de Gomide oferece o acesso direto aos textos; o livro de Schnaiderman traz informações sobre boa parte dos escritores e o destino kafkiano de suas obras ao longo do século 20; e Elif Batuman propõe a "aventura" de inseminar a vida com a leitura dos russos e vice-versa.

Diversos autores são tratados nos três livros, mas basta o exemplo do patrono da literatura russa, Aleksandr Púchkin (1799-1873). Dele, Gomide escolheu a "Viagem a Arzrum" (1836), reelaboração de seu diário de campanha numa expedição ao Cáucaso em 1829.

Impedido pelas autoridades de se incorporar ao Exército para participar da Guerra Russo-Turca de 1828-29, Púchkin decidiu mergulhar nos confins orientais do Império, num "comportamento temerário, quase suicida", como escreve Schnaiderman. Ele dedica belas páginas ao impacto literário da conquista do Cáucaso no início do século 19, comentando particularmente a viagem de Púchkin.

Já Batuman foi em busca da intersecção entre duas culturas: tanto a Rússia que adotou intelectualmente como a Turquia de sua família historicamente disputaram a influência cultural sobre o Uzbequistão.

"Quanto mais eu lia a 'Viagem a Arzrum' de Púchkin, mais paralelos encontrava com a minha própria experiência", escreve ela. "Do mesmo modo que Púchkin estava se escondendo da polícia secreta, eu também me escondia da minha tia Arzu".

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