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O céu é o limite

O robô que venceu um programa de auditório

RESUMO No centenário de Alan Turing, que formulou nos anos 1950 as bases para o desenvolvimento de inteligência artificial, o professor de matemática de Oxford Marcus du Sautoy descreve o estado da arte na robótica: robôs capazes de vencer programas de perguntas e respostas na TV, de pintar e até de improvisar jazz.

MARCUS DU SAUTOY

TRADUÇÃO PAULO MIGLIACCI

"Proponho considerar a questão: 'As máquinas são capazes de pensar?'" As palavras não são minhas, mas a frase inicial de um importante estudo publicado por Alan Turing em 1950, considerado por quase todos como um catalisador da moderna busca pela criação de inteligência artificial.

A questão foi inspirada por um livro que ele ganhou aos 10 anos, "Natural Wonders Every Child Should Know" (maravilhas da natureza que toda criança deveria conhecer), de Edwin Tenney Brewster. Repleto de informações que estimularam a imaginação do jovem Turing, o livro trazia esta ousada declaração:

"É claro que o corpo é uma máquina. É imensamente complexo, bem mais complicado que qualquer máquina artificial, mas, ainda assim, uma máquina. Já foi comparado a um motor a vapor. Mas isso foi antes de descobrirmos tudo o que sabemos sobre seu funcionamento. Na verdade, o corpo mais parece um motor a gasolina, como o de um automóvel, uma lancha ou uma máquina voadora".

Se o corpo fosse uma máquina, Turing começou a imaginar, seria possível inventar uma engenhoca capaz de pensar como ele? Este ano marca o centenário de nascimento de Turing; ficaria ele impressionado ou decepcionado com o estado atual das pesquisas sobre inteligência artificial? As máquinas extraordinárias que construímos desde que o estudo de Turing foi publicado se aproximam da inteligência humana?

Podemos contornar milhões de anos de evolução e criar algo que rivalize com o poderio de 1,5 kg de massa cinzenta encaixado entre as orelhas? Como quantificar efetivamente a inteligência humana para saber se tivemos ou não êxito em realizar o sonho de Turing?

Ou a busca por recriar a "nós mesmos" é uma ilusão? Deveríamos, em vez disso, tentar criar uma máquina com inteligência diferente da nossa?

WATSON O ano passado viu um dos grandes avanços rumo à criação da inteligência artificial. Cientistas da IBM programaram um computador chamado Watson para disputar com o melhor que a humanidade a oferecer num dos mais conhecidos "game shows" da TV americana: o programa de perguntas e respostas "Jeopardy!".

De início, criar uma máquina capaz de participar desse tipo de programa poderia parecer trivial. Mas responder a perguntas como "Que autor teve um famoso romance influenciado por 'An Account of the Principalities of Moldavia and Wallachia', de William Wilkinson?" requer programação altamente sofisticada, capaz de oferecer a resposta antes que um adversário aperte a campainha. Com a resposta "Bram Stoker", Watson ganhou o título de "Jeopardy!".

Watson não é o primeiro vencedor produzido pela IBM. Em 1997, o supercomputador Deep Blue, produzido pela companhia, venceu o então campeão mundial de xadrez Garry Kasparov. Mas competir em "Jeopardy!" é um desafio muito diferente para um computador.

Jogar xadrez requer profunda análise lógica dos movimentos possíveis nas sucessivas jogadas de uma partida. Já vencer em "Jeopardy!" requer um processo horizontal de pensamento, raso, porém extenso, e um gigantesco banco de dados.

O programa que está no cerne do sistema operacional do Watson é especialmente sofisticado porque aprende com os próprios erros. Os algoritmos que selecionam as respostas mais prováveis são alterados pelo computador a cada resposta errada que ele dá; assim, da próxima vez que uma pergunta semelhante for feita, aumenta a probabilidade de acerto.

A ideia de uma máquina capaz de aprender é um novo e poderoso ingrediente na inteligência artificial e vem criando máquinas que rapidamente dão prova de capacidade para realizar tarefas não planejadas por seus programadores.

A despeito da vitória, alguns dos erros que Watson cometeu foram reveladores. Na categoria "cidades dos EUA", os participantes tinham de adivinhar qual era esta cidade: "Seu maior aeroporto leva o nome de um herói da Segunda Guerra Mundial e seu segundo maior aeroporto tem o nome de uma batalha da mesma guerra".

Os participantes humanos responderam corretamente: "Chicago". O Watson optou por Toronto, que nem sequer fica nos EUA. A estranha resposta revela que quem está respondendo provavelmente é uma máquina, não uma pessoa. Fazer com que uma máquina se passasse por humana era um dos obstáculos que Turing acreditava precisar superar para chegar à inteligência artificial.

Com a criação do prêmio Loebner, em 1991, prêmios em dinheiro são oferecidos a quem seja capaz de criar um robô de chat (que conversa) que os jurados não sejam capazes de distinguir de um interlocutor humano. Esse procedimento, o Teste de Turing, é tido como pouco relevante por muitos profissionais da inteligência artificial. Eles consideram que o prêmio Loebner distorceu a busca e distraiu as atenções, que deveriam estar concentradas num objetivo mais interessante: criar inteligência artificial diferente da humana.

OBSESSÃO A comunidade da inteligência artificial está começando a questionar nossa obsessão com a reprodução da inteligência humana. Essa inteligência é produto de milhões de anos de evolução, e é provável que reproduzi-la por engenharia reversa seja uma tarefa impossível num prazo menor que o original.

A ênfase agora começa a ser transferida para o desenvolvimento de inteligência criativa específica para máquinas, que possa ser explorada para amplificar a nossa peculiar modalidade de inteligência.

Os descendentes do Deep Blue já estão realizando tarefas que nenhum cérebro humano seria capaz de encarar. O Blue Gene executa 360 trilhões de operações por segundo, ante a média de 3 bilhões de instruções por segundo em um computador convencional.

Esse extraordinário poderio vem sendo usado para simular o comportamento de moléculas em nível atômico (a fim de explorar o envelhecimento de materiais), o desenvolvimento de turbulência em líquidos e até mesmo como as proteínas se dobram no corpo humano. A ciência acredita que as dobras da proteína tenham papel vital em diversas doenças degenerativas, e por isso essas simulações computadorizadas podem propiciar benefícios médicos.

Mas isso não representa apenas processamento numérico, em vez do surgimento de uma nova inteligência? A máquina está simplesmente executando tarefas programadas pelo cérebro humano. Pode se mostrar capaz de superar o desempenho do cérebro humano em qualquer atividade computacional, mas, quando eu lido com matemática, meu cérebro opera muito além de apenas computar.

Ele também trabalha em nível inconsciente, executando saltos intuitivos. Uso a minha imaginação para criar novos percursos que volta e meia envolvem sensibilidade estética, a fim de chegar a uma nova descoberta matemática. É esse tipo de atividade que muitos de nós veem como própria do cérebro humano e impossível de reproduzir em máquinas.

Para mim, um dos testes para determinar se uma inteligência está começando a surgir é verificar se o usuário tirou do processo mais do que colocou. As máquinas são criações humanas, mas, quando aquilo que produzem começa a surpreender seus criadores, creio que surge algo interessante.

ARTE Novas pesquisas vêm explorando a criatividade das máquinas na música e na arte. Stravinsky certa vez escreveu que só conseguia ser criativo se trabalhasse dentro de limites estritamente definidos: "Minha liberdade consiste em me movimentar dentro do espaço estreito que designei para mim em cada empreitada".

Ao compreender as restrições que produzem música de qualidade, os engenheiros de computação do Laboratório de Ciência da Computação da Sony, em Paris, começam a produzir máquinas que criam formas novas e únicas de composição musical. Um de seus grandes sucessos foi produzir uma máquina capaz de acompanhar músicos ao vivo em improvisos de jazz. O resultado surpreendeu músicos que ensaiaram durante anos para desenvolver essa capacidade.

Outros projetos exploram a criatividade das máquinas na produção de artes visuais. Simon Colton, do Imperial College, criou um programa chamado Painting Fool (veja entrevista ao lado). Nem todo mundo gosta da arte que o programa produz, mas, se todos a apreciassem, ela seria sem graça.

O extraordinário é que os programas usados nessas máquinas estão aprendendo, mudando e evoluindo, de modo que, em breve, o programador poderá não saber com clareza como os resultados estão surgindo nem o que a máquina fará em seguida. Tirar mais do que você colocou em um processo representa algo semelhante ao desenvolvimento de uma nova inteligência.

Para mim, uma das experiências mais notáveis de inteligência artificial é fruto de uma ideia de Luc Steels, diretor do laboratório da Sony em Paris. Ele criou máquinas capazes de desenvolver linguagem própria.

Em uma experiência com uma população de 20 robôs, cada um foi exposto à própria imagem no espelho e em seguida começou a estudar as formas criadas pelo seu corpo. A cada forma desenvolvida, o robô criava uma palavra para designá-la. Se o robô punha o braço esquerdo na posição horizontal, criava um nome para isso. Cada robô criava uma linguagem própria para suas ações.

Mas a parte realmente instigante vem a seguir, quando os robôs começaram a interagir. Um robô selecionava uma palavra de seu vocabulário acumulado e pedia a outro que executasse a ação por ela descrita.

É provável que o segundo robô nem fizesse ideia do que lhe estava sendo pedido, e por isso optava aleatoriamente por uma de suas posições. Se o segundo robô fazia a escolha certa, o primeiro confirmava a resposta; caso contrário, mostrava ao segundo robô a posição correspondente à sua palavra.

O segundo robô pode ter atribuído outra palavra àquela ação, e por isso não abandonava a sua escolha de imediato, mas atualizava o vocabulário para incluir a palavra do primeiro robô. Com o avanço das interações, os robôs atribuíam valores ponderados às suas palavras com base no sucesso da comunicação, reduzindo o peso das palavras com as quais a comunicação fracassou.

O que é extraordinário é que, depois de uma semana de interação entre robôs, tendia a emergir uma linguagem comum. Ao se atualizarem e aprenderem continuamente, os robôs desenvolveram uma linguagem própria. Uma linguagem sofisticada o bastante para incluir palavras que representam os conceitos de "direita" e "esquerda".

Essas palavras são o máximo em termos de correspondência direta entre palavra e posição de corpo. Existir qualquer convergência já seria muito interessante, mas o que realmente me impressiona é que os robôs dispõem de uma nova linguagem, que eles compreendem, mas que os pesquisadores não sabem o que significa, até que ao final da semana decodifiquem o significado das novas palavras.

Turing talvez se sentisse desapontado por, em seu centenário, ainda não existirem máquinas capazes de passarem por humanos, mas creio que haveria de se entusiasmar com o novo rumo da inteligência artificial.

A comunidade da inteligência artificial já não está obcecada com a reprodução da inteligência humana, produto de milhões de anos de evolução, mas sim com a evolução de algo realmente novo e potencialmente muito mais interessante.

Nota
Texto originalmente publicado no jornal britânico "The Observer".

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