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O MAPA DA CULTURA

A outra civilização

Xingu, maio de 2008

Beatriz Lefèvre
O diretor no Parque Regional do Xingu, durante pesquisa para filme sobre os irmãos Villas-Bôas
O diretor no Parque Regional do Xingu, durante pesquisa para filme sobre os irmãos Villas-Bôas

CAO HAMBURGER

EM MARÇO DE 2008, comprei um tênis de aventura, uma mochila, uma rede de acampamento, cantil, meias especiais, boné, repelente, barras de cereal.... Eu me preparava para a primeira viagem ao Parque Indígena do Xingu.

Havia lido, visto filmes e fotos sobre o parque, sobre os povos que ali vivem e sobre os irmãos Villas-Bôas, criadores e primeiros administradores daquele lugar misterioso e mítico. Era o início da imersão que resultou no filme "Xingu".

A ideia era conhecer o lugar, as pessoas, os costumes, e saber o ponto de vista dos índios sobre os brancos e os próprios Villas-Bôas.

Partimos de São Paulo em uma pequena expedição. Um avião de carreira até Goiânia, de lá um teco-teco até Canarana, cidade perto do parque. Lá ouvi a expressão definidora: "Quando vocês vão entrar?".

A frase não precisa de complemento. Na fronteira do parque, a palavra "entrar" funciona como senha. Em breve você vai deixar o mundo normal, banal, e ser transportado a um lugar tão especial que nem precisa ser nomeado.

Pela manhã, acordamos cedo, sol nascendo, teco-teco no ar. Do alto, vemos imensos pastos e plantações de soja. Os bois parecem vermes brancos. Rios transformados em lagos por barreiras.

Lembramos a preocupação dos Villas-Bôas com a aproximação da civilização e o perigo da contaminação dos rios por agrotóxicos e do comprometimento de seus ciclos pelas barragens em seus afluentes.

O "abraço da morte", segundo os irmãos, asfixiaria o parque se cuidados não fossem tomados. Bem, quando no Brasil cuidados desse tipo são tomados? A ameaça se tornou real nos dias de hoje.

Estou tomado por pensamentos ambíguos entre a preservação de matas, campos e rios e a pujança produtiva do agronegócio quando, de repente, a paisagem muda definitivamente. Entramos?

Não há duvida. O cenário abaixo do avião é de beleza estonteante. São campos de cerrado que se tornam matas, que viram florestas de buritis e campos de novo, cortados por rios e lagos, diferentes tonalidades de verde, marrom e azul.

O estado de embriaguez visual se completa quando o piloto, Gilson, nos aponta a primeira aldeia. Um grande círculo de terra batida, circundado por ocas gigantes, altivas, aumenta a sensação de estarmos em uma ficção cientifica.

As aldeias se integram à paisagem com harmonia, ao mesmo tempo que delimitam e destacam a presença humana.

Começo a entender os irmãos Villas-Bôas. Vai ficando claro por que aqueles paulistas de classe média largaram tudo para viver ali.

Nos dez dias seguintes, converso com moradores. Vamos a aldeias, falamos com jovens e velhos, dormimos nas ocas, tomamos banho de rio, andamos de barco. É o primeiro contato, superficial, como não poderia deixar de ser em tão pouco tempo, mas transformador.

Entendo a dimensão do que estamos nos propondo a fazer.

Nosso filme não é só sobre aqueles caras que mudaram o destino do Brasil, mas sobre o encontro de civilizações. A nossa e a outra.

O outra, dita primitiva, se mostra sofisticada. Uma sociedade organizada com rígidos códigos de ética, com a educação de seus indivíduos como maior valor. E que vive em harmonia com seu meio.

Não à toa humanistas e idealistas, como Orlando e Cláudio Villas-Boas, arriscaram suas vidas para defender essa civilização e cultura. Homens à frente de seu tempo, viram o quanto esse tesouro seria útil ao Brasil e ao mundo. Falta o Brasil e o mundo perceberem isso.

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