Arquivo Aberto

Garrafas ao mar

LEONEL KAZ

"PERDEU-SE preciosidade de grande valor afetivo com as seguintes características: cabelos e olhos castanhos, morena, linda, 18 anos, carinhosa, sensível, adorável e maravilhosa, atendendo pelo nome de ANGÉLICA, amiga e antiga namorada. Gratifica-se a quem a fizer voltar. URGENTE. -EU."

Não sei se Angélica voltou. O anúncio foi publicado na seção "Diversos/ Caixa Postal" dos Classificados do "Jornal do Brasil".

A edição era a de 13 de novembro de 1976. Era um sábado de outrora, sem internet. A televisão emanava o programa de J. Silvestre e as revistas "Sétimo Céu" e "POP", das quais fui editor, estavam na moda. Escreviam-se cartas.

Naquele sábado, só se publicaram dois anúncios na seção "Caixa Postal". O segundo assim apregoava no papel impresso: "RAPAZ DESQUITADO, 31 anos, procura moça ou senhora de bom nível e liberal. Cartas para a portaria deste jornal sob o nº 243 095/25".

A caixa postal, no caso, era destinada a receber cartas, diligentemente levadas, em mãos, à portaria do jornal. Remexo na alma do tempo e me pergunto se o RAPAZ DESQUITADO não seria o mesmo que procurava ANGÉLICA e, por conta do risco e da perda, resolveu publicar os dois anúncios.

Por essa época, eu e Salvador, meu sócio na Alumbramento, víamos, amiúde, Carlos Drummond de Andrade -no que ele, de tímido, permitia-se ver. Dele, estávamos editando "Amor Amores", um livro artesanal de 300 exemplares.

Numa visita, levei uns quantos jambos catados na floresta da Tijuca e uns quantos classificados catados do jornal. Entreguei-os com uma carta datilografada, que começava assim: "Gosto muito de ler classificados. Aliás, sempre gostei". Respondeu-me o poeta num cartão manuscrito: "Também sou um velho caçador de classificados. Eles são como garrafas lançadas ao mar com mensagem dentro."

Terminei por ganhar uma crônica de Drummond, resultado de uma ida minha ao Salão do Papel Velho, em Paris. Lá encontrei postais do Rio no princípio do século, todos endereçados: a Macau, ao Império Austro-Húngaro.

Escrevi um artigo, publicado na "Arte Hoje", e enviei muitos dos postais a quem admirava, Houaiss e Drummond entre eles. Minha surpresa foi encontrar, uma semana depois, em 30 de abril de 1978, um texto do "JB" intitulado "Postais do Brasil no mundo":

"O amor levou Leonel a Paris e o levaria ao fim do mundo [...]. Enquanto vive o seu amor, Leonel continua a ser o mesmo ser que se interessa pelo segredo humano dos anúncios classificados, pela sorte das paisagens devastadas, pela edição de livros de arte. Nos centímetros com que se espremem ofertas e procuras, recados, orações e tudo o mais que seja objeto de comunicação, ele um dia me disse que vê uma dimensão poética, 'a dimensão que cada um de nós esconde, e que se esconde nas entrelinhas de cada um'."

Era um tempo em que dimensões poéticas se escondiam.

Não havia o desespero que acomete passageiros dos vôos Rio-São Paulo que, mal os pneus da aeronave tocam o solo, desatam, todos ao mesmo tempo, a disparar seus celulares, como se estivessem atirando contra o pavor de se desconectarem de sua solidão original.

Lembro que, menino, ia ao bairro de Guaratiba, no Rio, passar férias com tia Mary (que havia sido eleita Rainha da Urca em 1917). Para telefonar de Guaratiba às Laranjeiras, era preciso ir à peixaria, onde havia um telefone. Girava-se a manivela e aguardava-se um bel canto dizer "rurrrrral". Era a telefonista que nos mandava soletrar o número e, em seguida, despachava o recado: "Volte amanhã às 17h para completarmos a ligação."

Havia tempo, talvez, para se refletir um pouco mais. Talvez Angélica estivesse em Guaratiba naquele sábado do anúncio no "JB". Talvez, por isso, ela não tenha adquirido aquela edição do jornal.

Alguém sabe se Angélica respondeu ao anúncio? Se alguém souber, mande carta à portaria deste jornal, com a menção "Caixa Postal".