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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Diário da viagem à China

ROLAND BARTHES

tradução IVONE C. BENEDETTI

CHEGADA A PEQUIM

"E então, China?..." Soldados jovens: impressão de nada por baixo da túnica. Sorrisos. Saguão do aeroporto: sóbrio, austero. Couros. Suíça 50 anos atrás.

Um grande retângulo vermelho.1 Support Surfaces.2 Caminho do aeroporto, estrada reta ladeada por salgueiros. Cruzamos com um cão, um jovem europeu correndo de short. O intérprete: está "friozinho".

Objeto fetiche: a grande garrafa térmica com água quente para o chá, florida com decalcomania, que algumas moças e rapazes têm nas mãos.

Sábado, 1 4 de abril3 (Pequim)

Tempo encoberto. Dormi mal, travesseiro alto demais e duro. Enxaqueca.

Ontem à noite: reunião com os guias. Pequeno saguão do hotel. Grandes sofás, nos braços, crochê. A "polidez" e as câmaras.

Austeridade: roupa sem passar.

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Olhadinha pela janela às seis horas da manhã. Badminton. Um joga muito bem, há uma troca -apenas alguns movimentos, como quem fuma um cigarro.

Os corpos? atarracados e elásticos. Certo jeito de saco. Não há diferença sexual.

De repente, alguém, vaga eletricidade erótica: é que ele tem olhos inteligentes. Inteligência vale por sexo. Mas onde é que eles põem sua sexualidade?

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Sinto que não poderei esclarecê-los em nada -mas apenas nos esclarecer a partir deles. Portanto, o que se há de escrever não é "E então, China?", mas "E então, França?".

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Cortejos de escolares com bandeiras vermelhas. Brecht. Procurar a "Cor". Azuis acinzentados. Manchas vermelhas. Ferro. Cáqui. Verde.

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Praça Tian An Men: Grupos. A passo ordinário. Apitos. Coro. Estereofônico. Marselhesa. Professoras, professores. Mochila, cantil. Crianças. Criptomilitar. Doze-catorze anos. Seguram-se pelas mãos. Garotas: bolsa, paletó curto + calças curtas (Pinças de calça para ciclistas).4

Apesar do sol, brisa. Tudo isso tem um encanto... Caprichos da arregimentação. Há pessoas isoladas. Os velhos são mais maravilhosos ainda que as crianças. Nem uma só pele bonita. Cetineta, veludo. Mãos finas. Estrabismo. Rostos com pele marcada. A categoria "Professora primária chinesa". Bundas grandes. Palhaço.

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Bege envernizado das telhas da Cidade.

O que restará de Pequim? Uma brisa, uma luz velada, uma tepidez, céu azul leve, alguns flocos de neve.

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Cortes de cabelos codificados. Que impressão! ausência total de moda. Grau zero de indumentária. Nenhum rebuscamento, nem escolha. Preclusão da sensualidade.

Outro objeto emblema-fetiche: o megafone (elétrico) carregado por uma professora.

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Jardim. Ameixeiras japonesas, magnólias em flor.

Pedras. Meninas brincando de dançar em torno de uma corda dupla -variando os passos- em vez de pular mecanicamente. Pequenos piqueniques de crianças em grupo. Pão, anoraque branco, maçã.

Deserto da Sensualidade. Efeito de mutação produzido pela uniformidade total das roupas. Isso produz: silêncio, leveza, não vulgaridade -à custa da abolição do erotismo. Como um efeito Zen.

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Dois jovens com as mãos nos ombros um do outro. Mais tarde, porém -depois dos quatorze anos- nenhum. Portanto, recalque. Portanto, sexualidade?

Os raríssimos bonitos são curiosos, olham -início de relação?

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11h35. Primeiro sinal de sexualidade. Um descaradinho de cáqui e o companheiro olham para Julia com um sorrisinho gaiato.

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Cheiros. Repolho na Praça. Museu dos Tesouros. Cachorro molhado, excremento de cavalo, leite azedo.

14h. Tarde. Lu Gu Cho

Comuna popular da Amizade sino-romena ou da ponte Marco Polo.5

-

Li Sian. Vice-presidente Comuna e Comitê Revolucionário.6 Sra. Ho Shiu Young. Chefe do bureau administrativo da Comuna.

-Fusão cinco cooperativas.

-Prestar serviços à cidade.

-Horticultura: último ano, 230 milhões de libras + maçãs, peras, uva, arroz, milho, trigo; 22.000 porcos + patos.

[Longa mesa oleado verde-claro. Cada um de um lado. Limpo. No fundo, cinco imensas garrafas térmicas pintadas (o samovar deles)]

Etapas: Grupo de ajuda mútua → Cooperativas → Comuna popular = aumento da produção → segundo princípios:

1) Mao: Comuna é bom. 2) "Organizem-se". [Ele7 conhece anos e números de cor]

[Na parede: Mao + citações + mapa pintado da comuna. Cadeiras ao longo da parede]

O chá é servido: sempre xícaras-potes.

Por que esses resultados?

-aplanamento dos campos

-trabalhos de irrigação. 550 bombeamentos elétricos

-mecanização: tratores + 140 motocultores.

[A moça do chá, rosto rosado, camponês, plácido, dentes brancos e tranças, assiste]

Transportes: 110 caminhões, 770 veículos de tração animal. = 11. 000 famílias = 47. 000 pessoas. [O guia nos trata por tu]

= 21 brigadas de produção, 146 equipes de produção.

= 10 oficinas-fábricas (consertos, instrumentos agrícolas. Blocos11).

Todo esse bem-estar foi acumulado por nós mesmos.

Cada um que trabalha recebe mais de 600 yuans por ano.

Nossos próprios esforços sem pedir investimento do Estado.

Mao: "É preciso centrar o problema sanitário no campo".

Atendimento médico gratuito (salvo inscrição). Cinquenta médicos descalços.8 Cada equipe tem um ou dois médicos, cada brigada tem um centro de atendimento. Comuna: um dispensário.

[Somos novamente servidos da garrafa térmica]

Educação: 50 escolas secundárias + 19 primárias. Cada ano: 20 candidatos para a Universidade, eleitos pela Comuna.

80 lojas: todos os artigos pelos mesmos preços das cidades. Roupas: parte fornecida pela Comuna. Ainda há deficiências. Nível da mecanização.

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Visitas

Lojas. Somos aplaudidos. Frutas (maçãs, uvas, peras. Cheiro forte). Grande garrafa térmica de vime. Muito limpo e muito arrumado.

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Uma casa (o tempo está lindo). Verdadeiros canteirinhos de hortaliças.

Alocução da Mãe:

Antes da Libertação,9 etc.

1949 o PCC nos libertou do abismo.

1954 participamos da cooperativa primária.

1955 construímos estes cinco cômodos.

Três filhos, quatro filhas. O mais velho na fábrica (24 anos).

Eletricidade. O marido: fabrica tijolos.

[Fico pensando: todas as mulheres de calças. A saia desaparece10]

Excedente de dinheiro: na Caixa Econômica.

"Vida atual realmente excelente. Comparação com o passado: céu e terra".

[Toda essa visita a uma casa: lembra a visita à casa holandesa da ilha Marken]

Agora, as Mulheres têm direito de estudar, ir ao cinema etc.

Jornada: 5h acorda.

6h Plantações. 7h30 Desjejum.

Intervalo às 10h.

12h Almoço.

13h30 Trabalho → 15h30.

Depois descanso etc. → 7h.

Noite: às vezes cinema.

Trabalho: todo dia: recebe pontos de trabalho

(28 dias para o homem, 26 para a mulher). Não há domingo.

Rodízio. A cada dez dias, meia jornada para a política + três vezes por semana, estudo. Hoje: crítica a Confúcio e Lin Piao. Lin Piao: queria voltar aos ritos para manter os camponeses na pobreza.

Nós o estigmatizamos. [É a mulher que fala com autoridade]. Confúcio quis restaurar a escravidão, Lin Piao também, copiou Confúcio.

Alguns vasos de gerânio.

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Na rua de taipa. Na parede um Quadro Negro. Poema de giz.

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Segunda casa. Cercado, pequenas árvores frutíferas em flor. A moça de vinte anos (aquela que nos serviu o chá no início): às vezes também faz poemas (e lê romances heroicos).

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Momento de realização, assentimento, concordância: duas aulas, uma de inglês, uma de física (sobre a Força). Aplaudem. Rostos. Objetos escolares pobres e limpos. Caritatismo. Além disso, eles nos aplaudem tão bem! Aula de química. Em cada lugar uma bacia e uma torneira.

Pingue-pongue. Ph. S. joga. Pelas grandes vidraças, o dia claríssimo e árvores novas.

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Eletricidade. Professor encantador vestido de macacão azul.11 Tudo isso finalmente erótico. Essas aulas.

-

Haverá no fundo penetras, gozadores, indisciplinados? "VERIFICAR"

-

Dispensário. Ácido clorídrico. Poças pelo chão. Cinco médicos descalços entre os quais a encantadora japonesa que nos apresentou o dispensário (veste jaleco branco comprido demais -como se estivesse fantasiada).

-

Noite. Marionetes. Salão subúrbio. Forte granizo (cf. Dispensário). Aborrecido e inevitável: vemo-nos confinados com duas filas de velhas europeias. Impossível misturar-se. Eles não querem. Corpos proibidos. Exclusões.

-

Noite: a maior enxaqueca da minha vida -insônia e náusea. Angústia, pior, pânico. Isso, chego a pensar, simbolizaria toda a rejeição do dia, toda a ruptura entre: Sim nada a dizer e não, não quero (o Sim mas do fetichista).12

-

Lembrete: Talvez todo discurso político funcione como um objeto de investimento, de ab-reação, que por outro lado lhes possibilita não ser conflituosos, ser uniformes.

Façamos um sacrifício a um bocado de Doxa, e todo o resto do Discurso (corporal, pulsional) estará livre.

Notas do autor e da organizadora

1. Com dois arbustos verdes na frente. (Nota do autor)

2. Grupo de artistas franceses contemporâneos.

3. Lapso de Roland Barthes para sábado, 13 de abril.

4. E pelo fato de afastarem um pouco os braços e os dedos. (Nota do autor)

5. A comuna da Amizade sino-romena estava situada ao lado da ponte Marco Polo (Lugogiao), perto de Pequim, famosa pelo incidente de 7 de julho de 1937, que marcou o início da guerra sino-japonesa.

6. Instalados em 1967-68, durante a Revolução Cultural, os comitês revolucionários simbolizaram a tomada do poder subtraído aos antigos dirigentes.

7. Trata-se de Li Sian, vice-presidente da Comuna.

8. Mao Tse-tung lançou a partir de 1965 a ideia dos "médicos descalços", que atuavam no campo depois de terem feito um curso de formação médica de três a seis meses.

9. "Libertação" designa a vitória dos comunistas sobre o Kuomintang em 1949. A República Popular da China foi fundada em 1º de outubro.

10. O traje tradicional era com calça. (Nota do autor)

11. Sua mão, suave e tépida - e fico sabendo que é operário. (Nota do autor)

12. Vômito do Estereótipo, da Doxa. (Nota do autor)

SOBRE O TEXTO A série de textos inéditos que a "Ilustríssima" adianta em primeira mão traz trechos dos diários que Roland Barthes escreveu durante sua viagem à China entre abril e maio, na companhia de intelectuais do grupo "Tel Quel", como Philippe Sollers, Julia Kristeva e Marcelin Pleynet. A editora WMF Martins Fontes lançará os diários em junho, com organização de Anne Herschberg.

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