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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Fulanos e beltranos

MAÍRA DVOREK

SUZANA EXAMINAVA o currículo dos rapazes antes do primeiro encontro.
Família, emprego e marca do carro.
Lia os livros e via os filmes certos para agradá-los.
No apartamento, mostrava a fotografia do pai falecido e as contas do hospital da mãe doente.
Falsificava o teste de gravidez e aplicava o dinheiro do aborto na bolsa.

BEATRIZ DORMIA com alguns clientes do bar para pagar a faculdade de psicologia.
Anunciava a bundinha num site.
Atendia num flat.
O pai não sabia.
A mãe ficou tão feliz com o carro novo que nem se deu conta.
Os irmãos implicavam com seus horários estranhos.
Dizia que trabalhava no bingo.
Largou a profissão quando viu pelo olho mágico o rosto infiel do pai.

SAPATO MARROM combinando com o cinto.
Trabalho na repartição, arrimo de família.
Virgem até os 24 anos, casou com Maria Ligia, jovem professora de primário.
Ela usava saia na altura do joelho, ele, rolex dourado.
Embrulhavam os controles remotos da casa com magipac, comiam fora somente às sextas-feiras e fizeram poupança para o filho ir à Disney.
Foi encontrado morto com metade do corpo para fora do parapeito.
Nos pés, cheiro de alfazema. Embaixo da calça, meia calça arrastão e calcinha de rendinha.
Maria Ligia não entendeu o que aquilo significava, mas, por via das dúvidas, mandou o filho tirar o brinquinho da orelha.

NINGUÉM SABIA ao certo a idade de seu Ataulfo, nem ele próprio.
Mais de 60, menos de 70.
Era caseiro dedicado, "mais de dez anos, aqui, ó, cravados na carteira de trabalho, isso em cada serviço!"
Nesse último, foram 15 anos.
Regava as plantas do jardim, consertava goteiras, fazia café e pegava o pão fresco na padaria antes de todos acordarem.
Rezava às seis junto com o sino da igreja.
A neta da patroa reclamou:
-Esse velho é tarado, vó.
Descobriram o passado do velho.
Prestaram queixa.
Ele morreu meses depois em casa de parada cardíaca.
A patroa pagou para a família um par de cestas básicas que estava devendo.
E a menina ficou com raiva de gente velha.

LÚCIO ERA GALÃ de TV. Vendia carro e geladeira nos comerciais.
Recluso, dizia não ao convite das mocinhas para ir badalar nos Jardins.
Em casa, vestia smoking de veludo preto, passava gel no cabelo, tirava as bonecas infláveis do quartinho de empregada. Para cada uma delas, um nome.
Conversavam sobre arte e
política.
Uma delas sempre o desagradava. O hálito de cigarro da moça não era sinal de bons modos.

JOÃO FELIPE GOSTAVA das calças com vinco, porta-retratos e mulher dentro de casa.
Antes de dormir orava em segredo para que algo de extraordinário lhe ocorresse.
Morreu aos 92 anos engasgado com a sopa do asilo.

THIAGO PEGAVA o primeiro ônibus que aparecesse na volta da escola. Rodava a cidade no último banco de trás sob o olhar curioso do cobrador. Chegando no ponto final, ignorava o pedido de descer do motorista. Às seis da tarde voltava pra casa e respondia ao pai como tudo estava indo bem nos treinos de basquete. Jantava no quarto olhando as medalhas que tinha conseguido em troca de cola nas provas de física.
Às nove dava um beijo de boa noite na mãe, que o abençoava:
" Durma com Deus, meu filho e não se esqueça, meu querido, se amanhã, na volta da escola, por acaso encontrar meu cadáver no asfalto, de não incomodar seu pai no escritório."

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