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Arquivo aberto MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS O conselho de Jorge Amado Salvador, 1981
EXEMPLOS E CONSELHOS nunca me faltaram pelos muitos e nem sempre lógicos caminhos que venho tomando em diversas e controversas atividades. Exemplos e conselhos dos mais variados tipos e sobre os mais diversos assuntos. Com os mais velhos sempre me surpreendendo -de Anton Walter Smetak me tratando por "saudosista" (comigo em plena adolescência!) a Lúcio Costa me chamando de "pessimista", justo quando eu me achava cheio de otimismo, a caminho de um novo milênio. Tratei de sempre tentar aprender. Nunca esqueci, por exemplo, o arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, recebendo de uma médica uma queixa referente a um hospital que acabara de construir como parte da rede Sarah Kubitschek, onde trabalhávamos. Lelé tinha feito sanitários separados por sexo, masculino e feminino, e não por grau de instrução, é claro. A médica não gostou: "O senhor não acha que deveria ter feito sanitários separados para médicos?". E Lelé, com a maior calma: "Por quê? Bunda de médico é diferente da bunda dos outros?". Augusto de Campos, por sua vez, não contente em me guiar por obras estéticas complexas (de Sousândrade a Pound, passando por Stockhausen), me tirou razoável peso intelectual das costas. Eu tinha lido o "Ulysses", mas não conseguia atravessar o "Finnegans Wake", do velho Joyce. Comentei com Augusto, que disse: "Nada de tentar 'atravessar' o 'Finnegans'. Melhor ir por outro caminho. Ler o 'Finnegans' mais ou menos como leria o 'I-Ching'". Já que eu tinha uma ideia da configuração geral do livro, que abrisse o volume ao acaso e fosse viajando, mergulhando aqui ou ali, em passagens que se desenhassem como "hexagramas". Se Augusto me falou de leitura, Jorge Amado me ensinou sobre o ato de escrever. Em suas adolescências, alguns escritores baianos, nascidos dos anos 40 e 50 para cá, criticaram duramente Jorge e sua obra. Eu não fugira à regra. No dia em que fomos apresentados, lembrei isso a ele, que sorriu, sem dar a mínima para o que eu tinha dito. Mostrou-se interessado em outras coisas. Falou da Bahia, da questão racial brasileira, da importância da obra de Pierre Verger, que então começava a ser divulgada no Brasil etc. Em 1981, quando "Carnaval Ijexá", meu primeiro livro, foi publicado, enviei um exemplar a Jorge. Ele agradeceu e disse que me veria no lançamento. Não entendi: o que iria fazer lá, se já tinha o livro? Distrair-se? Não, não só. Era mais. Fazer política cultural, digamos. Ele foi ao evento, a mídia o cercou e ele deu o recado (ou uma força), chamando a atenção para o livro, o jovem autor etc. Depois, já afastado dos repórteres, fez uma observação e me deu um conselho. A observação anunciava dificuldades à vista (ossos do ofício no "âmbito selvaggio" da "cultura"?): "Eles não vão incensá-lo sem mais nem menos. Você terá de se impor, de descer goela abaixo deles, por talento e seriedade". O conselho: "Você não parou para escrever uma obra-prima, e sim um livro. Continue assim. Nunca sente para escrever obras-primas, sente para escrever livros. Isso de obra-prima não deve ser problema seu, mas dos outros. Quem lê é que tem de achar. Faça só o seu trabalho". Escutei a observação, é claro, mesmo não a levando tanto em conta. Mas o que de fato segui (e continuo seguindo) foi o conselho. Tenho de fazer meu trabalho, sentar e escrever os textos, e só -e não ficar por aí encafifado, cheio de travas e trevas, sem produzir, sem socializar informações, acumulando forças para um empreendimento magnífico. Ou, ainda, à espera de um estalo célebre como aquele com que Nossa Senhora das Maravilhas premiou padre Vieira, fazendo-o de súbito senhor de um xadrez de estrelas. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros |
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