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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Oiticica, marginal e herói

Nova York, anos 1970

MARISA ÁLVAREZ LIMA

Durante anos, meu papo com Hélio Oiticica (1937-1980) era diário e interminável. Ficávamos horas no telefone, e "ge-ni-al!" era a exclamação que eu mais ouvia quando ele se referia a alguém que admirava. Daí para a raiva incontrolável que o fazia bufar era um pulo rápido. Ele tinha lá seus vários desafetos oscilantes.

Nós nos conhecemos por meio de Lygia Pape, nos anos 60, quando eu assinava uma coluna sobre vanguarda na revista "Cigarra". Eu tinha na época um caderno em que reunia dedicatórias dos amigos. A dele brincava com minha defesa veemente ao tropicalismo: "Esta é a tropicália da Marisa, a mais tropical repórter do Brasil"

Era engraçado observar como ele convivia com suas variadas facetas: o artista marginal, o operador de telex, o passista da Mangueira, o intelectual, o anarquista, o profissional seríssimo e vaidoso, o apologista das drogas, o amigo do bandido Cara de Cavalo, a quem homenageou no trabalho "Seja Marginal, Seja Herói" (1968).

Em meados dos anos 70, reencontrei Hélio, morando em Nova York. Telefonei para ele assim que cheguei à cidade, e ele reclamou -bufando, é claro- do meu sumiço, dizendo que eu deveria ter enricado e agora me hospedava na casa de amigos grã-finos na 5a Avenida.

Eu não tinha enricado coisíssima nenhuma e debochei da insinuação. Sabia que ele ia adorar quando dissesse, e assim o fiz, que sentia demais a falta dele.

O apartamento dele ficava no segundo andar de uma casinha charmosa, branca com janelas azuis, na arborizada Christopher Street, no East Village. O ambiente era estranho, atulhado, e ele dormia no que denominou de "O Ninho", sua mais recente obra. Achei-o louquíssimo, ansioso. E assustado com as ameaças dos "transeiros de Miles Davis" -foi o termo que usou para se referir a traficantes. Tinha aprontado com eles e pagou o preço por isso.

Depois de um longo papo sobre arte, amigos e toda sorte de maluquices, achei graça quando ele me convidou a assistir um show sadomasoquista, coisa que jamais me atraiu, numa boate gay onde a presença de qualquer mulher era expressamente proibida.

Disse que não precisava me preocupar porque me vestiria de homem, como tinha feito com uma conhecida senhora da alta sociedade carioca.

Esta figura feminina, nascida em Istambul, extravagante e irreverente, tinha sido casada com um grande empresário brasileiro. Depois, ficou popular saindo em escola de samba, sendo júri no programa do Chacrinha e namorando o famoso cantor brega Waldick Soriano, autor do sucesso "Eu Não Sou Cachorro Não."

Seria verdade ou era só uma história de Hélio para me convencer a qualquer custo? Não posso duvidar da ida dela a essa especialíssima boate gay. Poder financeiro era o que não lhe faltava para se livrar de qualquer possível confusão.

Não era o meu caso. Eu já fantasiava a manchete: "Briga em boate do submundo de Nova York", com o subtítulo "Fotógrafa brasileira fazia parte do grupo".

Era capaz de me ver atrás das grades, entre viciados e outros personagens como os que fizeram a glória do fotógrafo Robert Mapplethorpe, vestidos de couro negro com tachas prateadas, luvas e chicotes, seres de outro universo, e não do meu.

Para desgosto do Hélio, que insistia em não entender minha caretice, não topei o programa.

Liberei sua noite sem muitos salamaleques, lembrando que no dia seguinte embarcaria de volta ao Rio e precisava fazer as malas e dormir um sono tranquilo.

No fundo, estava aborrecida pela decepção que havia causado nele. Deixei-o buscando voluntários ao telefone e peguei um táxi amarelo, que me deixou, segura, em frente ao prédio do Upper East Side, onde estava hospedada.

No apartamento, preparei um very dry martini e fiquei quieta, na penumbra, escutando um disco de Billie Holiday. Lamentavelmente, não tive mais a chance de ver o meu querido amigo.

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