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Reportagem

O XXX da questão

Como a internet derrubou o pornô

RESUMO

Louis Theroux volta a personagens que entrevistou há 15 anos para compor um retrato da decadência comercial dos filmes "hardcore". Nocauteada por vídeos caseiros e/ou gratuitos na internet, a indústria tenta se reinventar com produtos mais sofisticados e de "bom gosto", mas vê cachês e vendas minguarem.

LOUIS THEROUX

TRADUÇÃO RODRIGO LEITE

Em uma Bela casa numa rua sem saída no vale de San Fernando, na Califórnia, uma atriz enfrenta problemas com seus gemidos. Alexa Nicole (nome artístico) interpreta uma beldade latina em "A Love Story", filme pornográfico sobre um autor de livros românticos que sofre de um bloqueio criativo.

Está sendo gravada uma sequência de fantasia na qual Alexa vaga por corredores na penumbra, de camisola branca e com um castiçal nas mãos. Ela tropeça nos braços de seu amante, Miguel, interpretado por Xander Corvus, astro em ascensão que veste calça de couro, blusa com babados e colete. Sob o ardor da paixão, eles fazem amor numa espreguiçadeira.

Mas há um detalhe. Os gritos de prazer de Alexa, rápidos e agudos, não atendem aos padrões do diretor. "Menos pornô", ele diz. Como ilustração, ele propõe uma leitura diferente -menos urgente, mais feminina. "Yes, yes, yes!" Ele anuncia sua palavra-chave do dia: "Romantismo!". A produção é do estúdio Wicked Picture, especializado em filmes adultos sofisticados. Apesar da palavra "adultos", a ênfase nos gemidos revela que não se trata de um pornô qualquer.

Durante anos, a indústria pornográfica foi dominada por um vale-tudo anarquista em relação ao sexo. Diretores competiam para ver quem encenava as proezas mais ultrajantes, levando os atores ao limite de seus corpos. Não era fácil assistir a certas cenas, como eu mesmo descobri em 2004, quando visitei sets de filmagem para um livro que escrevi.

Os atos sexuais pareciam ter mais a ver com os reality shows em que as pessoas comem vermes vivos e vômito de porco que com alguma coisa erótica.

Mas, em algum momento em torno de 2007, a indústria entrou em queda livre. A chegada de sites gratuitos, no estilo do YouTube, significou que os consumidores poderiam baixar de graça cenas pirateadas de um vasto acervo de conteúdos antigos. O fenômeno dos amadores que postam seus vídeos também afetou os cachês dos profissionais. De repente, um setor que era sinônimo de dinheiro fácil passou a lutar por sobrevivência.

Pior, os consumidores podem sentir pelo Radiohead, digamos, suficiente lealdade a ponto de comprar seu novo lançamento em vez de baixá-lo ilegalmente, mas usuários de pornografia não nutrem os mesmos sentimentos pela série "Dirty Debutantes".

Como com toda evolução das mídias nos últimos 30 anos, do VHS ao DVD e ao nascimento da internet, a pornografia estava novamente na vanguarda, só que desta vez rumo à obsolescência.

SEM TRABALHO

E o que acontece com a indústria vale para os atores. Sabe-se que muitos chegam à pornografia em busca de reconhecimento, fugindo de agressões e abusos. Aderem a um estilo de vida que traz estresse, doenças e constrangimento, mas sem oferecer algo como aposentadoria ou plano de saúde. Agora estão sem trabalho, tendo como única experiência no currículo fazer sexo por dinheiro.

A indústria tenta se adaptar do ponto de vista empresarial. Em parte, trata-se simplesmente de encolher. No começo da década de 2000, a bíblia do setor, a revista "Adult Video News" trazia todo mês centenas de resenhas de lançamentos. Numa edição recente havia só 14. Numerosas produtoras deixaram o negócio.

As que restaram focaram em produtos sofisticados, tentando derrotar os sites com algo que se pareça com uma experiência cinematográfica, num voo rumo à "qualidade". Para alguns, isso significa mais cenas voltadas para mulheres e um sexo menos agressivo. Para outros, significa parodiar sucessos da TV ou do cinema.

Uma das mais improváveis figuras da indústria reinventada é Rob Zicari, mais conhecido como Rob Black. Na década de 90, ele era um dos mais notórios provocadores na pornografia. Especializou-se no mau gosto: seus filmes eram exercícios grotescos de quebra de tabus, em vez de algo que proporcionasse prazer sexual.

Em 1997, entrevistei-o em Los Angeles e fui ao set de "Forced Entry", um filme sobre estupro. Ele tinha 23 anos na época, e me chamou a atenção o estranho contraste entre o fato de ele ser um sujeito simpático e inteligente -ainda que de um jeito ultracafeinado- ao mesmo tempo em que fazia filmes pornográficos especializados na degradação das mulheres.

Seis anos depois, as provocações de Black foram apanhadas pela "guerra à obscenidade" de George W. Bush. Black e sua mulher e sócia, Janet Romano (conhecida como Lizzie Borden), cumpriram pena de um ano por obscenidade. Ao deixar a prisão, um arrependido Black abandonou seus sadismos para dirigir paródias de super-heróis para a produtora Vivid - "Capitão América XXX", "Homem de Ferro XXX"- lançadas em caixas de luxo, às vezes em 3D.

"Do jeito que a coisa vai, dá para apresentar a pornografia a sua mulher ou namorada", me diz ele durante uma visita a seu novo escritório. Black parece gasto e aparenta mais do que os seus 38 anos.

CACHÊ

A coisa é pior para quem aparece na tela. Apesar das paródias e dos filmes para casais, não há emprego para as hordas de atores que ganhavam a vida fazendo sexo diante das câmeras.

Numa das principais agências de atores em Los Angeles, a LA Direct, a contabilista Francine Amidor lamenta o impacto "devastador" da pirataria. "Há menos trabalho e abundância de atores -por causa da crise . Não tem gente filmando o suficiente para dar um dia de trabalho para cada um."

Pergunto a Francine se admite isso para os aspirantes que ainda vão à LA Direct. Ela nega. "Se falasse, três quartos das meninas estariam fora do negócio, e aí nós é que não ficaríamos nele."

Os cachês foram afetados. "Agora, algumas recebem US$ 600 por cena", diz a atriz aposentada JJ Michaels. "Pode até ser US$ 900 ou 1.000 para atrizes que tenham nome. Chegava a US$ 3.000." Os rapazes recebem até US$ 150.

As mulheres completam a renda com strip-teases ou shows ao vivo pela internet, em casa, com webcams. Numa noite, estive na casa de uma das principais atrizes da LA Direct, Kagney Linn Karter. Enquanto ela se preparava, Monte, seu namorado e assistente, pendurava roupas no varal. Monte e eu vamos até a cozinha, onde ele cuida da louça enquanto Kagney tira a roupa e se masturba para estranhos que a veem no computador. Após 45 minutos, ela aparece: "Pois é, ganhei cem dólares", diz.

Completar a renda com "programas paralelos" é um segredo de polichinelo no mundo pornô. Segundo o discurso oficial, isso é perigoso (pois os clientes não fazem a testes anti-HIV como os atores) e irresponsável (as mulheres podem contaminar a comunidade). A prática é disseminada, pois as mulheres podem ganhar bem mais fazendo sexo a portas fechadas do que diante das câmeras. Muitas fazem dos filmes um bico, uma propaganda para o seu verdadeiro negócio, a prostituição.

Já os homens não têm as mesmas opções. Para um ínfimo subgrupo, ainda existe um contracheque regular, cada vez menor. Para o baixo escalão, o trabalho secou e a ansiedade é generalizada.

FORMATO

Um dos atores mais conhecidos nos anos 1990 era Jon Dough, nascido Chet Anuszak. Tinha contrato com a Vivid- na época, o único homem no setor a ser exclusivo de uma produtora. Entrevistei-o em 1996, no set do remake de "Debbie Does Dallas". Suas ereções prolongadas eram célebres e ele era querido no meio. Mas, quando se matou, em 2006, aos 43, supôs-se que os problemas do setor o tivessem motivado.

A viúva de Dough é uma ex-atriz. Eles se conheceram no set e tiveram uma filha. Ninguém no mundo do pornô sabe do paradeiro de Monique. Eu a localizei em um Estado conservador, bem longe de Los Angeles. Em seu apartamento, no subsolo de um prédio em um bairro insalubre, ela diz que o marido se matou por causa do vício em cocaína e da consequente instabilidade dela, não por pressões da indústria.

Mesmo assim, a percepção dos colegas de que as vendas de DVDs contribuíram para o seu suicídio reflete uma verdade emocional: no mundo da pornografia, as pessoas estavam preparadas para acreditar que o declínio de um formato de mídia tenha levado ao suicídio de um ator de primeiro escalão.

Mesmo assim continuam aparecendo legiões de aspirantes à procura de novas vidas de riqueza e estrelato, num mundo que não pode mais oferecer nem uma coisa, nem outra. Visitam produtoras para conhecer agentes e diretores, preenchem questionários marcando um X no que estão dispostos a fazer diante das câmeras. Fazem uma ou duas cenas baratas para a internet, antes de serem jogados de volta para o anonimato.

Num dia chuvoso, de volta à casa espaçosa que serviu de locação para "A Love Story", outra produção estava em curso. Desta vez, é algo mais modesto -cenas para um site. Um dos atores, Tony Prince, está em sua segunda gravação. Sua parceira é Stefania. É a terceira gravação dela, que parece empolgada com a presença da imprensa. "Estou tentando me tornar uma das maiores estrelas pornô", diz. Ela pede para tirar uma foto comigo, que depois publica no Twitter.

A cena deveria parecer uma gravação caseira, entre namorados da vida real. Uma vantagem disso é que não há necessidade de cinegrafista. Os próprios atores gravam. Enquanto vão direto ao assunto, para aliviar qualquer possível ansiedade por parte de Tony na hora da filmagem, o diretor e eu nos enfiamos na cozinha. No negócio desde 1998, ele também se mostra pessimista. "Sempre digo ao pessoal: é melhor vocês fazerem disso um bico", afirma.

Horas depois, os dois atores estão rindo e tomando banho juntos, felizes. Numa inversão da ordem natural das coisas, estão flertando e ficando amigos após o sexo.

PREVISÃO

É difícil prever onde a indústria vai parar. Ainda há um mercado para filmes soft, feitos por empresas como Penthouse e Hustler, disponíveis em canais de TV por assinatura. As paródias podem perdurar por um tempo. Mas é difícil ver como um negócio que venda filmes "hardcore" seja sustentável quando a maioria das pessoas simplesmente não quer mais pagar se não for preciso. Para muita gente, quando se trata de pornografia, não pagar pelo conteúdo parece a coisa mais moral a fazer.

"Não vejo como poderá existir um ator pornô profissional em cinco anos", diz Michaels. Não é fácil se solidarizar com as produtoras, que por tanto tempo ganharam tanto ao abraçarem um negócio de mau gosto e com uma força de trabalho disfuncional. Mas vale a pena reservar um pensamento para as legiões de atores cuja única qualificação é fazer sexo diante das câmeras, que não têm dinheiro guardado, nem futuro.

E há uma questão mais ampla: será que quem consome pornografia não deve um pouco à indústria? Quem baixa cenas de sexo não precisaria entregar um incentivo financeiro para a atividade? Se não, por quê? O estigma associado à pornografia torna correto furtá-la?

Essas questões ocultam um dilema maior: como sustentar uma indústria que oferece um certo padrão de produto quando cada vez mais consumidores estão habituados a baixar conteúdo de graça? No mundo da pornografia, a resposta é: impossível.

Nota do editor Publicado no jornal britânico "The Guardian". Leia em folha.com/ilustrissima "O pornô está vendendo saúde", réplica a este texto, pelas ativistas antipornografia Gail Dines e Dana Bialer.

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