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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Meu primeiro editor

Peabiru-PR, 1985

MIGUEL SANCHES NETO

Em 1985, eu tinha 20 anos e não era nada precoce. Vivia em Peabiru e fazia a graduação em letras. Cursar letras era uma forma um tanto torta de me encaminhar para a literatura, mas à literatura só se chega mesmo por caminhos tortos.

Isolado no interior do Paraná, na pré-história da informática, buscava me infiltrar no mundo literário. Uma das formas que encontrei para isso foram os concursos. Sem conhecer a lógica de funcionamento da máquina editorial, mandei três pequenos poemas para um promovido pela Shogun Arte, uma editora sediada no Rio.

Foi com alegria que recebi o ofício dizendo que eu era um dos ganhadores. Um dos meus poemas havia sido selecionado para a antologia "A Nova Poesia Brasileira".

Pela primeira vez fui tratado como autor. Embora não fosse via contrato, e sim carta-compromisso, pela qual o autor concordava em pagar 380 mil cruzeiros, em quatro prestações, para ter seu poema publicado. Seria o que hoje se chama de "investimento".

Nem a quantia proibitiva para uma família operária -minha mãe pagava meus estudos trabalhando como costureira- diminuiu meu sentimento de triunfo. O jovem interiorano conquistava um lugar na poesia brasileira.

Devo confessar que só paguei a primeira prestação, mas a editora cumpriu o combinado mandando meus exemplares de autor. Sou um dos cem poetas na antologia. Meu nome mal pode ser lido na capa, mas isso talvez decorra de meus recentes problemas de visão.

Assim se deu o meu ingresso no glamoroso mundo das letras, induzido a pagar por um concurso que eu, na teoria, havia ganhado.

Quase três décadas depois, continuo inadimplente. E teria me esquecido do episódio se não tivesse lido "O Mago" (Planeta, 2008), de Fernando Morais.

No livro, descobri que o dono da Shogun Arte era Paulo Coelho, que transformou tal sistema editorial em um negócio de sucesso -segundo o biógrafo, ele faturava, imprimindo quatro antologias por ano (400 poetas de todo o Brasil dando mensalmente o seu dízimo literário), mais de R$ 1 milhão em dinheiro atual. E depois nossos editores dizem que publicar poesia não é rentável!

As informações me levaram a buscar um exemplar da velha antologia, não pelo valor do que escrevi, mas para recuperar um documento editorial.

Minha mãe havia guardado o exemplar que eu dedicara à minha irmã. Por isso posso exibir na minha egoteca esse precioso exemplar, manchado de terra e com páginas faltando -felizmente, não a de meu poema, "pinga no copo": "pinga no piso/lágrima escorrega dia/ água ardente/ água salina/ escondida atrás da face/ de quem sempre/ teve a face escondida (...)"

Na nota editorial (assinada por um anônimo "Editor" -seria ele?), há uma defesa da poesia como memória da nação: "O brasileiro é um poeta quase que nato. Tudo que vemos e que sentimos transformamos em poesia. Nossa tendência literária é sempre descrever o passado, e a memória é a principal arma de que dispomos, valendo como mais importante instrumento de trabalho do poeta".

Em nome dessa memória viva, maior que a linguagem, voltei àqueles anos de ignorância e ingenuidade, quando ainda acreditava no poder transcendental da arte.

Lecionando literatura, trabalhando em jornais e revistas, tentei juntar as pedras soltas de uma biografia da qual eu pudesse sentir algum orgulho.

Minha mãe não costura para fora mais, também faz muito tempo que não precisa me ajudar com as contas, que agora pago em dia.

Escrevi aí uns livros, ganhei um ou outro prêmio, mas, em termos de glória literária, não há nada que se compare ao fato, puramente acidental, de ter tido como primeiro editor esse fenômeno chamado Paulo Coelho -a quem devo a minha estreia e três prestações da minha cota na edição de "A Nova Poesia Brasileira" de 1985.

Estou aqui, publicamente, pedindo anistia para essa velha dívida.

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