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Arquivo Pessoal

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O beijo que nunca dei

São Bernardo do Campo, 2002

TATA AMARAL

Carlão era um deambulador, e eu também sou. Que prazer era encontrá-lo perambulando pelas ruas! Sempre entusiasmado, nos entusiasmando, compartilhava suas últimas descobertas: um músico excepcional, um pintor estimulante, um filme maravilhoso.

Num desses encontros inesperados, na esquina da Angélica com a Alagoas, Carlão me contou sobre o filme que preparava, "Garotas do ABC". Eu havia acabado um documentário em Santo André, realizado com Francisco Cesar Filho. Tínhamos muito assunto, e a conversa se alongou, animada.

Talvez tenha sido a empolgação que levou Carlão a me convidar a fazer uma cena como figurante. Topei. Que honra! Que divertido! Sempre fui fã do Carlão. Dos seus filmes, das suas conversas, da sua generosidade. Ele nunca economizou admiração pelos seus colegas. Escreveu um dos textos mais emocionantes sobre "Um Céu de Estrelas", meu primeiro longa-metragem. Claro que topei.

Carlão descreveu a cena: as garotas do ABC são operárias e frequentam o clube Democrático. Adorei o nome! Minha cara! Carlão prosseguiu: o clube tem salão e apresentação musical aos sábados; tem pista e mesas; numa delas, você está sentada com fulana -citou o nome de uma amiga nossa, também diretora. Vocês são um casal e estão se beijando.

Os automóveis da avenida Angélica deixaram de produzir ruídos. Apagaram a luz do céu. Fez-se silêncio no mundo.

"Carlão, um beijo gay? Na fulana? Mas ela é minha amiga!"

"Pensa. Fica à vontade. Conversa com ela. Vocês podem ficar na mesa conversando. Mas um beijo entre as duas vai ficar mais legal."

Como cineasta, tive de concordar. Os dias foram passando, a vida foi levando, esqueci o assunto. Lembrei ao ver minha amiga:

"Fulana, e o beijo gay no filme do Carlão?"

"Ah, não dá!"

"Pois é. Vamos falar com ele?"

Não falamos. Os dias passaram, ligaram da produção:

"A cena, assim, assim, no clube Democrático. Semana que vem. A van busca você tal hora etc e tal."

Deu um tempo, telefonei para minha amiga:

"E o beijo gay? Não falamos pro Carlão."

"Ih, falei com a produção. Estarei fora de São Paulo. Não posso. Nem com beijo nem sem beijo."

Ótimo, pensei: sem ela, Carlão deve ter desistido da cena. Ou será que escalou outra para contracenar comigo? Não dá! Não sou atriz. Vou dizer ao Carlão:

"Só beijo por amor!"

Ele vai entender o apelo rodrigueano.

A van me buscou na porta de casa. No set, Carlão veio me receber, gentil como sempre. Sara, Maria, as produtoras. Jacob, diretor de fotografia. O set era uma delícia!

"Carlão, não dá pra fazer a cena com beijo!"

Carlão era um buda iluminado. Levou-me à pista e mudou a cena:

"Fafá de Belém está cantando um bolero no palco. Você está na pista, dançando. Fafá desce cantando, passa por você e seu parceiro, vai até a mesa onde estão as atrizes. O travelling a segue."

"Bolero? Dança? Travelling?"

Gelei. Minha cabeça foi a mil: não sei dançar bolero. Não sei dançar juntinho. Continuei pensando: o travelling segue Fafá, que por sua vez passa por mim. Portanto, os trilhos do travelling ficarão atravessados no chão, no meu caminho. Portanto, eu, que não danço bem, terei de fazer isso desviando dos trilhos. E sem dar bandeira de que estou reparando nos trilhos...

Entrei em pânico: vou tropeçar, desajustar o trilho, pisar no pé do parceiro, empurrar o assistente de câmera, o maquinista! Vou estragar a cena EM CENA!

Quase gritei:

"Ok, Carlão, quero fazer a cena do beijo!"

Admiro demais os atores.

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