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Esporte

Fé, prozac e polenta

Maratonistas em busca do altar interior

RESUMO

Dois livros recentes lançados nos EUA registram tentativas de descobrir como campeões se tornam campeões. Alberto Salazar, grande nome da corrida profissional, conta como encontrou no esporte um caminho para reconciliações. Adharanand Finn, jornalista e corredor, quis descobrir o segredo dos quenianos.

RODOLFO LUCENA

Correr é uma espécie de peregrinação, não em busca de um distante lugar sagrado, mas do altar interior: combater a gordura ou o estresse, bater recordes pessoais ou se divertir enquanto balança o corpo por aí. Na corrida, há tempo para pensar e sonhar, tempo para sofrer e para meditar nas próprias fraquezas e grandiosidades.

Alberto Salazar, talvez a mais influente figura no mundo da corrida profissional de longa distância nos EUA nos último 40 anos, personagem de longo perfil na "New Yorker" em 2010, encontrou no esporte -e na quase morte- um caminho para a reconciliação com o pai e a fé cristã. O repórter britânico Adharanand Finn nem maratonista era quando começou sua jornada: tentar desvendar o segredo que torna quenianos tão poderosos nas maratonas.

Eles são autores e personagens de dois livros que buscam explicar, cada um a seu jeito, a construção de campeões. Em "14 Minutes" [St. Martin Press, 264 págs., R$ 74], Alberto Salazar (com o jornalista John Brant) conta sua "vida, morte e vida", como diz no subtítulo. Os minutos se referem ao tempo em que ele ficou "clinicamente morto", segundo diz, sofrendo processo de ressuscitação depois de um ataque cardíaco em 2007.

"Fui salvo por uma combinação dos poderes da ciência e da graça [divina]", ele diz. O que lhe deu nova missão: "Fui poupado para contar minha história".

Já "Running With the Kenyans" [Ballantines Books, 288 págs., R$ 114] nada tem de místico, ainda que Finn veja nos quenianos, antes de começar sua empreitada, qualidades quase mágicas, corredores mitológicos que protegem, nas altitudes da África, segredos imemoriais.

Salazar começa com os dramas de sua formação, em uma família cubana cheia de som e fúria. Seu pai foi companheiro de Fidel Castro, combateu ao lado de Che Guevara, iniciou a construção da nova Cuba. Mas desencantou-se com o que considerou perseguição à fé católica e tratou de partir para os EUA, mais tarde levando a família.

Em território americano, o patriarca se somou às tramas da comunidade de cubanos exilados e chegou a integrar o grupo que, apoiado pela agência americana de espionagem CIA, tentou derrubar Castro na fracassada invasão da baía dos Porcos, em 1961.

Para Salazar, a figura paterna é um ser maior do que a vida: corajoso, cheio de rompantes, opiniões fortes que tentava impor a todos, fé católica fervorosa e inabalável. Quando menino, o futuro campeão fazia de tudo para se tornar orgulho do pai; mais tarde, só pensava em enfrentá-lo, afirmar-se como indivíduo independente.

TERAPIA

Confissões do gênero, que dariam para um terapeuta freudiano se empapuçar de análises de transferências e projeções, passam longe do texto de Finn. Ele revela, porém, como começou a desconfiar de que os quenianos poderiam ter o segredo da vitória.

Lembra a história de uma atleta finlandesa que não passava de boa competidora na adolescência -até, antes do mundial de cross-country juvenil de 1995, treinar por seis meses no Quênia. Voltou para a disputa, na Grã-Bretanha, e encantou a plateia ao conseguir suplantar, ao final, os supostamente imbatíveis etíopes e quenianos.

Finn estava lá, acompanhou o desempenho da garota de 16 anos. Ele, que aos 12 anos havia quebrado o recorde de sua escola para os 800 m e era então um universitário quase sedentário, perguntou-se: "O que houve com ela no Quênia? O que ela encontrou que a transformou em campeã mundial?"

A pergunta ficou adormecida por anos. O universitário transformou-se em profissional, criou família, engordou, acomodou-se. Até que as próprias lides do trabalho -passou a colaborar com uma revista de corrida- o levaram de volta ao mundo das corridas.

Sem treino, inscreveu-se numa prova interiorana de 10 km e, para sua surpresa, terminou em primeiro lugar. Seu tempo de campeão foi pedestre, mas cutucou as fibras da curiosidade e da vaidade, disparou a faísca do projeto que acabou se tornando o livro. Iria correr no Quênia sua primeira maratona.

Para Salazar, do lado de cá do Atlântico e vários anos antes, foi também uma competição escolar que apresentou o gosto inebriante da vitória. Ao final do quinto ano primário, venceu o valentão da escola, o queridinho das garotas, considerado imbatível. "Caminhei sobre nuvens o resto do dia", conta ele: "Eu era um corredor".

Descreve no livro sua trajetória esportiva, mas dedica muitas páginas ao processo da construção de sua fé e seu ideário político. Fala da história mística da família -um antepassado, mártir na Guerra da Secessão, teria se tornado cavaleiro sem cabeça- e revela visões que teve em momentos dramáticos da vida. É o relato de um evangelizador, ainda que ele repita não querer parecer especialista em religião nem fazer propaganda política.

CAMPEÃO

Talvez o fogo da fé seja necessário para transformar um atleta comum em um campeão. Se não, pelo menos o fogo do desejo. Ou a fome queimando o estômago, como acontece com as crianças quenianas, que por anos a fio correm descalças para a escola e, na adolescência, vislumbram na corrida as portas de uma vida melhor.

Não que seja fácil o cotidiano do corredor profissional. Tanto Salazar, comentando sua experiência, quanto Finn, reportando os exercícios intermináveis dos quenianos, falam de vidas pontuadas pelo sacrifício pessoal, por dores terríveis, pela depressão profunda da derrota e pela euforia fugaz da vitória -afinal, o dia seguinte será novamente de treino.

A depressão, por sinal, acompanhou Salazar pela vida afora. Após três vitórias na maratona de Nova York e a conquista épica do título em Boston no combate conhecido como Duelo ao Sol, sucumbiu a lesões que deixam sequelas até hoje. Os problemas que culminaram com o ataque cardíaco de 2007 talvez também sejam consequência de esforços da época.

Valeu-se da fé -orações, jejum e peregrinação a um vilarejo da então Iugoslávia, onde teria ocorrido uma aparição da Virgem Maria, fizeram parte do cardápio-e da medicina para enfrentar os problemas. Movido a Prozac, conseguiu reencontrar o prazer de correr, anos após o abandono das disputas profissionais. Voltou a treinar e a vencer. Em 1995, bateu o recorde da ultramaratona de Comrades, de quase 90 km, na África do Sul.

A transparência com que trata tais questões íntimas nem sempre é a mesma com que relata conquistas. No prólogo, por exemplo, afirma que, em 1981, sua vitória na maratona de Nova York foi um recorde mundial. Mais à frente, quando comenta os bastidores e o desenrolar daquela prova, cheio de emoção, fala de seus sentimentos depois alcançar seu sonho, tornando-se recordista mundial.

De fato, sua marca de 2h08min13 foi então a melhor da história, superando um recorde que já durava 12 anos. Mais tarde, porém, constatou-se que o percurso de Nova York naquele ano tinha sido mais curto que a distância oficial, e as marcas de Salazar e da campeã Allison Roe, que também supostamente batera o recorde mundial, passaram a ser desconsideradas.

Finn, por sua vez, viu-se às voltas com a desconstrução de mitos. Na Grã-Bretanha, acreditava que os africanos são bons por correrem descalços. Na sua primeira corrida no Quênia, onde viveu seis meses com a mulher e duas crianças pequenas, percebeu que todos vestiam tradicionais e grandalhões tênis de corrida. Não era correr descalço o segredo queniano.

COZINHA

Talvez a receita estivesse na cozinha, especula o repórter ao investigar a alimentação dos quenianos em busca de um elixir milagroso. Encontra só vegetais cozidos, pouca carne e muito ugali, espécie de polenta feita com farinha de milho branco. É o prato forte dos corredores, depois dos treinos e na véspera de provas.

Sem medo de rir de si mesmo, Finn descreve os treinos que faz com os quenianos, as revelações de cientistas, treinadores e campeões com que convive em Iten.

A cidade é uma meca dos corredores de longa distância. Para lá afluem os quenianos que querem uma chance internacional e estrangeiros em busca de revelação. Finn lá encontrou, por exemplo, o filho de Joan Benoit Samuelson, a norte-americana que venceu a primeira maratona olímpica feminina da história (Los Angeles, 1984).

Aliás, os encontros do repórter são de deixar extasiados qualquer interessado por corrida. Treinou lado a lado com campeões, entrevistou donos de performances históricas. Acompanhou a transmissão de uma maratona pela TV de um bar onde se encontrava o recordista olímpico Sammy Wanjiru, que meses depois iria morrer em condições não esclarecidas.

É assim que vai montando seu quebra-cabeça, que se completa com a constatação de que não há elixir, nem gene mágico, nem segredo de treinamento, mas uma conjuminância de fatores que levam ao sucesso dos quenianos. Um dos mais temperos mais brilhantes é a fome de ter sucesso, querer a vitória mais que qualquer outro, pois ela pode ser caminho para a fuga de uma vida miserável.

Salazar, por seu lado, também não conta com respostas prontas e acabadas além das de sua fé, mas persegue a receita para criar um novo campeão norte-americano -terá pupilos correndo por medalhas nos Jogos de Londres. Do ponto de vista pessoal, porém, diz ser apenas "um homem falível que aprendeu com a morte".

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