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Arquivo aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Rachel Weisz me deve uma

São Paulo, 2004

Arquivo pessoal
Fernando Meirelles e Thiago no set do curta "Identidade", dirigido por Meirelles e Nando Olival, em 2004
Fernando Meirelles e Thiago no set do curta "Identidade", dirigido por Meirelles e Nando Olival, em 2004

THIAGO DOTTORI

NO FINALZINHO DOS anos 90, eu cursava cinema e já gostava de escrever, mas a perspectiva para um aspirante a roteirista no Brasil não era das melhores. Mais ou menos como querer ser jogador profissional de curling morando em Copacabana. Queria mostrar meus textos, mas não era fácil achar quem quisesse ler, quanto mais produzir.

Segui. O primeiro trabalho pintou pouco antes das férias. Um amigo da faculdade me deu um toque sobre um estágio numa tal de O2 Filmes. Gostei do nome da produtora; fui e fiz a entrevista.

Na semana seguinte comecei a trabalhar. Minha primeira função: apontar o ventilador para o rosto de modelos em teste para um comercial de automóvel. E ainda me pagavam algo no final do mês? Era o emprego, digo, o estágio dos sonhos. Não era escrever para cinema, mas era mais legal que ficar na frente da tela sendo desafiado pela página em branco todos os dias.

Fiquei um tempo na O2, não só jogando vento no rosto de semideusas, mas também tirando xerox, organizando arquivo e conferindo fechamentos. Enquanto isso, aprendia sobre produção naquela casa labiríntica e instigante.

Eu me encantava com a sala de produção apinhada de gente, uma espécie de caos organizado onde reinava a sensação de liberdade atrelada ao comprometimento. Não demorou para notar no centro daquele microcosmos um maestro discreto, que nos estimulava, chamado Fernando Meirelles.

Mais tarde, quando fui promovido a segundo assistente de direção, tive a sorte de trabalhar em sets de filmagem em que Fernando era o diretor. Os sets dele sempre foram um mistério e um aprendizado. No ar havia uma sintonia fina entre descontração e responsabilidade, não importava se tínhamos uma diária com 200 figurantes ou só um ator e uma poltrona.

Ele tinha a incrível capacidade de silenciosamente convidar todos para dentro do filme. Aproveitava sugestões, lidava com imprevistos, criava um ambiente estimulante e imprimia tudo na película sem perder a mão do set. Até eu dava pitacos. "Fernando, que tal a câmera aqui?" Quase nunca emplaquei planos, mas seguia tentando.

Eu continuava escrevendo. Enfim achei que tinha algo bom nas mãos. Se podia sugerir um enquadramento, será que poderia enviar um roteiro? "Claro, manda". Dias depois Fernando me chamou para dizer rapidamente o que achava do projeto. Não fui convidado a escrever seu próximo longa, mas, creio que para efeito pedagógico, ele me entregou uma cópia do roteiro de "O Jardineiro Fiel" para ler.

Devorei o roteiro e o livro que o originou; queria entender diferenças entre uma coisa e outra. Fiquei fascinado com a história e descobri como se escrevia um roteiro "de verdade". A partir dali, eu seria "só" roteirista.

Pouco tempo depois, dividimos a mesa no casamento de um amigo em comum, o montador Daniel Rezende. Eu sabia tudo de "O Jardineiro Fiel", e Fernando nos disse que tinha dúvidas em relação ao elenco. Não encontrava a atriz e, para variar, aceitava sugestões.

Achei fascinante sugerir nomes tão distantes do meu mundo. Eu era apaixonado pela Rachel Weisz, atriz linda, talentosa, carismática e que tinha tudo a ver com o papel. Defendi com unhas e dentes. "Ok, 'A Múmia' não é um grande filme, mas cês viram 'Beleza Roubada'?".

Fernando anotou os nomes num guardanapo de papel e guardou no bolso. Dias depois, recebi um e-mail dele: "Conheci sua amiga Rachel Weisz". E não é que ela fez o filme? Uma interpretação belíssima, que, no ano seguinte, foi reconhecida com o Oscar.

Assisti à cerimônia em casa. No discurso de agradecimentos, fiquei esperando pelo meu nome, mas Rachel só agradeceu à família, ao Fernando, aos produtores e ao Ralph Fiennes.

Ok, ela não sabe que eu existo, claro. Mas eu, finalmente, tinha dado um bom pitaco.

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