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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O gentil substituto

Cairo, outubro de 2011

ANGEL BOJADSEN

SHARIA (RUA) ALFI Bey, hotel Windsor. Sob o Império Otomano, era casa de banhos de dirigentes turcos na capital egípcia. Em 1952, na revolução nacionalista de Nasser, então clube de oficiais britânicos, foi incendiado. Depois, foi usado por engenheiros da URSS durante a construção da barragem de Assuã. Estou no Cairo, um mil folhas de civilizações superpostas.

Hoje gentilmente decadente, o Windsor é digno de qualquer set cinematográfico. Meu quarto, o cinco, com enorme banheiro de mármore gasto, condiz com as origens de casa de banhos.

Às 9h, sou chamado em tom solene pela central telefônica. "O senhor Gamal Ghitany aguarda na recepção. Mas ele pede pela senhora Bojadsen." Gamal Ghitany, de quem a Estação Liberdade prepara a edição de "O Chamado do Poente", quer mostrar algo do Cairo à senhora Bojadsen.

Escritor cultuado no Egito e editor de jornal, ex-desenhista de tapetes, ele veio cerimonioso, de motorista, do alto de seus 60 anos, achando que encontraria uma petulante editora ocidental.

É o problema da correspondência: em inglês, não há gênero. O mal-entendido que perdurou por uns 20 e-mails amabilíssimos é desfeito no primeiro encontro.

Após quase uma hora de engarrafamento apocalíptico, chegamos a um dos massivos portões remanescentes da cidade islâmica.

Faz parte das regras do jogo eu não conhecer o Cairo antigo. O contrário seria um atentado à hospitalidade que os egípcios levam às últimas consequências. Refaço todo o trajeto à luz dos pertinentes comentários de Ghitany.

Ele mostra cruzes dissimuladas em mesquitas construídas por coptas; o beco onde Naguib Mahfouz (1911-2006), único Nobel egípcio, ambientou sua trilogia do Cairo; o hospital na mesquita Al Qalaun, onde se fazia tratamento psiquiátrico com música nos anos 1200.

Isso quando ele consegue falar, pois o param a cada cinco minutos para tirar fotos e perguntar o que acha sobre os eventos no Egito. O clima é de descontração, todo mundo soltando o verbo.

Perguntam a ele sobre a Líbia e a Síria. Ghitany teve suas tribulações sob Nasser e Mubarak -na época a repressão atingia ora os comunistas, ora os islamistas-, mas o problema agora é outro.

"O perigo para o Egito hoje não é Israel. Eles não querem mais guerra. É a Arábia Saudita, que subverte, despeja dinheiro e armas para os fundamentalistas, faz e desfaz governos."

Ao voltar ao hotel, me deparo com a alegria do recepcionista, que mostra orgulhoso o livro autografado que ganhou. Para mim, um pacote com oito livros de Gamal em várias línguas, junto com o bilhete: "Para o gentil substituto da senhora Bojadsen."

Um mês depois volto ao Cairo. Meu encontro com Mark Linz, editor da Universidade Americana do Cairo, furou. Estou na livraria deles, perto da praça Tahrir, aguardando nossa reunião, quando o fortíssimo gás lacrimogêneo da polícia invade tudo e muitos entram no local para buscar abrigo.

É 19 de novembro de 2011, quando tudo degenera. Os dias seguintes serão de guerra. Estou num hotel modernoso ao lado da famosa praça, atrás, ficam as centenas (sem exagero) de ambulâncias do Ministério da Saúde, enfileiradas para recolher os feridos por obra do Ministério do Interior.

No oitavo andar do hotel há cheiro de gás dia e noite. Por dois dias não podemos sair, e o editor da AUC Press cancela em definitivo nosso encontro, dizendo que a situação piorou e que não terá como chegar ao escritório nos próximos dez dias.

Saudade da recente e obsoleta calmaria do hotel Windsor e de seu recepcionista literato.

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