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Diário de Ouro Preto

Ouro tricentenário

Entre calçadas e lâmpadas

RAQUEL COZER

SE PUDESSE VOLTAR hoje à casa onde viveu no bairro Lajes, em Ouro Preto, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop (1911-79) encontraria a propriedade tal qual a deixou, em meados dos anos 70, mas decerto estranharia o entorno.

Da janela do quarto dela, ainda se vê o hotel Solar das Lajes, que um dia pertenceu ao casal Pedro e Lili Correia de Araujo. Só que, ao longo das décadas, a construção do número 604 da rua Conselheiro Quintiliano expandiu-se terreno abaixo, em blocos desordenados, culminando com um deque sobre o curso d'água natural -cuja implantação exigiu a retirada de árvores em área de preservação.

O hotel é um dos cerca de 300 imóveis em situação irregular dentre os 5.000 da área tombada de Ouro Preto, cidade que neste ano celebrou três séculos da elevação de arraial a vila. Por ficar num ponto alto, de grande visibilidade, é um dos casos mais emblemáticos nesse sentido, mas não só por isso. "Com esse grau de arbitrariedade, eu nunca tinha visto", diz Angelo Oswaldo (PMDB), prefeito em terceiro mandato, de notórios conhecimentos sobre a história local.

Reformas feitas desde 2009 pelo novo proprietário do hotel incluíram a instalação de dois leões de gesso na entrada e a substituição das telhas vermelhas, comuns a toda a região, por outras de cor bege clara. "Gosto é uma coisa que varia muito", diz o prefeito. "Se Ouro Preto fosse uma cidade só de gente de bom gosto, seria tediosa."

Os leões foram removidos a mando do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O telhado, que segundo o proprietário foi instalado porque o original ameaçava desabar, continua fora do padrão. "Telha branca numa cidade só de telhas vermelhas não dá. Fica fluorescente", diz Rafael Arrelaro, chefe do escritório técnico do Iphan de Ouro Preto.

Ao processo aberto pelo Iphan contra o proprietário anterior somam-se agora ações da prefeitura.

AO LARGO DO PASSEIO

Noutra feita, foram moradores que se mobilizaram na Justiça contra o prefeito. O motivo foi o alargamento do passeio público da rua São José, a "rua dos Bancos", principal via comercial da cidade.

A obra original visava o subsolo. Como já iria quebrar tudo para trocar as redes de água e esgoto, a prefeitura aproveitou para ampliar as calçadas. O Iphan aprovou a obra, já que os estreitos passeios foram idealizados numa época, no fim do século 19, em que pedestres andavam no meio da rua.

Alguns moradores não gostaram, até porque com isso ninguém mais pode estacionar ali. As obras começaram em junho e, com o imbróglio judicial, pararam por dois meses. Retomadas em outubro, acabam, com sorte, mês que vem.

CHUVA DE POESIA

Perto da rua São José, numa casa de dois andares na rua Getúlio Vargas, Guilherme Mansur, 53, acalenta o sonho pouco provável de ver o alargamento do passeio chegar até sua porta.

O poeta e tipógrafo ouro-pretense vive situação insólita para quem se tornou um símbolo cultural de uma cidade famosa pelas ladeiras e ruas de pedras. Portador de doença genética que lhe tira progressivamente a força muscular, usa cadeira de rodas há oito anos.

O mal não o impede de promover, cinco, seis vezes por ano, as "chuvas de poesia", nas quais são lançados de torres de igrejas milhares de pedaços de papel colorido, com poemas estampados. A mais recente aconteceu domingo passado, no Fórum das Letras de Ouro Preto, com traduções de Mansur para versos do catalão Joan Brossa (1919-98). Foram 30

poemas, em 5.000 folhetos. Mansur, que pouco sai de casa -em outros tempos, ele mesmo subia às torres para lançar os papéis-, viu tudo de perto. "É bonito ver gente trocando poemas como se fossem figurinhas." Há muitos ouro-pretanos que colecionam chuvas.

Para janeiro, ele prepara uma chuva com poemas sobre a chuva. Só não pode chover de verdade no dia, porque chuvas de poesia e de água são incompatíveis.

LUZ SECULAR

O suntuoso lustre da sala de congregação da Escola de Minas, perto da praça Tiradentes, fica quase sempre apagado. O motivo o editor Paulo Lemos descobriu ao organizar "Ouro Preto: 300 Anos de Imagem" (Graphar), lançado no Fórum das Letras. As lâmpadas instaladas nele, feitas com filamento de bambu, são de 1881.

Texto da Escola de Minas, reproduzido no livro, informa que as lâmpadas foram fabricadas pelo próprio Thomas Edson. Gilson Antônio Nunes, professor de museologia da Universidade Federal de Ouro Preto, diz que não é bem assim: "Quando se fala em lâmpadas de Thomas Edson, é porque o material que integra o filamento por onde passa energia é muito semelhante ao que ele desenvolveu."

De todo modo, o fato é que as lâmpadas, que d. Pedro 2° viu acesas, ainda funcionam. A Escola de Minas pode se dar ao luxo de ligá-las "poucos segundos por ano", segundo Nunes. Uma delas, em 2011, foi para o fotógrafo Germano Neto, que fez o clique para o livro.

A jornalista viajou a convite do Fórum das Letras de Ouro Preto.

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