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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Um solo ao lado do rei

Rio de Janeiro, 2001

TONY BELLOTTO

O convite chegara no início de 2001 na forma de um tiro disparado à queima-roupa por Luciana Braga num evento no Forte de Copacabana: "Papai quer que você participe do 'Acústico' dele".

A frase, casual e docemente proferida pelos lábios de princesa, guardava o poder destruidor de mil Fukushimas. Devo ter deixado cair a taça de Prosecco. A primeira coisa destruída, depois da taça: minha paz de espírito. Os dias seguintes foram gastos em coordenar sinapses mentais desgovernadas, surtos repentinos de egolatria e intensos abalos psíquicos e intestinais causados pelo convite.

Para homenagear os Titãs, banda na qual defendo a guitarra esquerda há três décadas consecutivas e que havia, anos antes, pescado uma canção relativamente obscura da fase soul (anos 70) de Roberto e Erasmo e a transformado num incandescente hit de fim de século, Roberto Carlos me convidava a acompanhá-lo ao violão em "É Preciso Saber Viver".

Preciso mesmo falar de quem é Roberto Carlos no Brasil? E do que é a perspectiva real de, não apenas encontrá-lo pessoalmente, mas tocar violão enquanto ele canta (e como!)?

No Brasil, qualquer figura -eu digitei qualquer- estará sempre alguns metros abaixo de Roberto no pódio transcendente que os americanos definem como "maior que a vida", aí incluídas, desculpem-me as heresias randômicas, Paul McCartney, padre Cícero, Chico Buarque, Nossa Senhora Aparecida, Fernanda Montenegro e, sei lá, madre Tereza de Calcutá.

O convite era auspicioso: eu tocaria o solo da música, de minha autoria, executado com o slide, ou "bottleneck", aquele pequeno cilindro de metal, ou de vidro, que se acopla ao dedo indicador, ou médio -ou ainda o mindinho-, do guitarrista e com o qual os velhos blueseiros do Mississipi criaram a técnica inconfundível que parece fazer as notas do violão, ou da guitarra, flutuarem lânguidas, melífluas e indivisíveis pelo espaço-tempo (George Harrison e Lulu Santos são mestres na matéria).

O que me leva a pensar em lavrar com canivete no tronco de um flamboyant: Tony ama Roberto.

O ensaio: horas antes que Roberto chegasse ao estúdio em que se gravaria o "Acústico MTV" (que não foi ao ar por causa de um imbróglio entre a emissora e a Rede Globo), aprendi com os músicos de sua banda que o rei é bem mais do que um mito majestoso, ele é um cantor e compositor capixaba, desses que você pode encontrar animando um baile em Cachoeiro de Itapemirim num sábado à noite.

Aprendi também que os integrantes do RC7 chamam de "Ré de Cachoeiro" o acorde de ré maior natural, o mais banal e antijoão-gilbertiano dos acordes, usado pelo rei para criar suas intrigantes e enganosamente descomplicadas obras-primas. Percebi também que muito do que se fala sobre as manias e idiossincrasias de Roberto é pura fofoca: alguns músicos vestiam roupas marrons e ninguém se preocupava com o fato de um contrabaixo remeter vagamente a um triângulo pontudo.

No estúdio senti muito frio, já que o ar -por ordens reais- permanecia numa temperatura próxima à das geleiras do polo Sul. As explicações para o clima glacial eram controversas: iam desde uma necessidade do rei de não suar -e portanto não desmantelar o penteado trabalhosamente mantido a que não se sabe quais milagres químicos-, até ao puro e simples mau funcionamento do aparelho de refrigeração.

Quando Roberto chegou uma grande excitação tomou conta de todos (talvez a baixa temperatura do ar se explicasse pela necessidade de esfriar os ânimos). A chegada de um Obama ao prédio da ONU, assim como a de um Dalai Lama ao Taj Mahal, ou a de um Bono Vox ao Madison Square Garden, não seriam cercadas de menos aparato. E depois que ele desceu do carro tudo se transformou novamente: lá estava o Roberto, de Cachoeiro, caminhando em direção ao estúdio enquanto eu atabalhoadamente procurava no bolso da calça a folha de papel com as encomendas de autógrafos.

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