São Paulo, domingo, 03 de julho de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Toque de guru

São Paulo, 1972

Marlene Bergamo - 19.jun.2009/Folhapress
O salão caramelo no centro do prédio da FAU-USP, onde Flávio Império consolou Rafic Farah

RAFIC FARAH

"AI. FAZ UMA falta de rachar. Ele tinha que estar aqui, para rir de muita coisa que é levada a sério. (pausa) Para mostrar que se pode fazer muito mais bonito."
A cantora Maria Bethânia diz essas frases no documentário "Flávio Império em Tempo" (1997), de Cao Hamburger e Raimo Benedetti. Melhor do que eu, Zé Celso Martinez Corrêa, Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha, entre outros, sabem falar sobre o cenógrafo, arquiteto e diretor (1935-1985).
Faz tempo que se foi. Era bonito, cativante, caminhava com certa altivez. Sem o orgulho de quem alcançou prêmios internacionais ou qualquer vestígio de soberba. Só empinava o nariz para olhar como estava o tempo. O ar que se deslocava à sua passagem parecia alterar as coisas ao redor, como se elas se pusessem à sua disposição a dizer: "Venha, me toque, eleve-me a um lugar onde eu tenha significado". Dava a sensação de que o seu andar fazia o mundo girar.
Tinha eu lá meus 20 e poucos anos e cursava o segundo ano de arquitetura da USP. Namorava uma garota do primeiro. Ela me deu um fora, ficou com um colega meu. Como doía... Quase desisti da escola para não ter mais a memória do lugar, não vê-los mais.
Numa manhã, já bem atrasado, depois de ter perdido quase todas as aulas, atravessava o famoso salão caramelo, como é chamada a grande, bela e vazia "praça" térrea do suntuoso prédio projetado pelo arquiteto Villanova Artigas. Qualquer pessoa que atravesse o grande plano de piso liso e brilhante fica exposta. Mas o lugar estava vazio; não teria de cumprimentar ninguém. Não flagrariam a minha dor. Estava na fossa, como se dizia -não se falava em depressão. Não queria mais ser arquiteto nem artista. Minha felicidade estava depositada nas mãos daquela mulher; ela estava procurando a sua nas mãos de outro. E pareciam ter acabado de descobrir isso.
Me dirigi às escadarias que dão acesso às salas de aula. Antes que eu pudesse completar o percurso, Flávio apareceu. Caminhávamos na mesma diagonal; eu, a caminho da escada; ele, deixando-a atrás de si. Não me sobrava traço de energia para esboçar uma máscara social, balbuciar um "bom dia". Mas não houve como evitar o encontro.
Ele começou: "Oi, Turcats [meu apelido à época: mistura de turco e gato, em inglês], tudo bem? Nossa, cê tá assim por causa dela?" (meu caso de amor era conhecido na escola). E então me tocou o peito com dois dedos dobrados, numa espécie de afago.
Num mundo comum, num cotidiano ordinário, conseguia alinhar coisas e pessoas, harmonizando-as tal como num arranjo musical possível e inusitado, cada qual assumindo suas características mais peculiares, algumas até ocultas. Isso poderia acontecer no cenário de um show, de uma peça ou em sua pintura. Gente comum como eu, aluno qualquer com quem ele cruzou naquele instante, revelava-se em singularidades simpáticas. Muitos acabavam por envolver-se em suas obras, alguns dividindo autorias. Flávio, um tropicalista-renascentista, foi o cara mais subversivo que conheci - nessa época, subversivo era o que não faltava.
Para além de sua obra, tinha a raríssima habilidade de alçar as pessoas a um lugar onde descobriam um sentido e luziam em harmonia com as demais. Aprenderam também a fazer isso, espargindo essa espécie de dom de lidar com o coletivo. Essa capacidade de revelar grandes ou pequenas aptidões de cada um nos parecia um toque de guru. Em qualquer tarefa, trabalhávamos como em uma celebração. Isso poderia acontecer a toda hora. Sua arte era viver e viver para revelar a arte.
Naquela manhã do encontro com Flávio, decidi voltar a frequentar normalmente as aulas; descobri haver outras meninas bonitas na faculdade. E o mundo voltava a girar.


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