São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2010

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CRÍTICA

Uma enciclopédia da vida russa

Púchkin e a invenção de uma tradição

RESUMO
Púchkin (1799-1837) não apenas fundou a literatura russa como foi o primeiro mestre em todos os gêneros literários em seu país. A publicação da primeira tradução brasileira de sua obra-prima, o romance em versos "Eugênio Oneguin", e da coletânea de contos "Noites Egípcias" são um marco editorial no Brasil.

NELSON ASCHER

QUANDO, FERIDO EM DUELO, morreu com 37 anos, Púchkin legou a seus conterrâneos uma extensa e variada obra, elaborada em apenas duas décadas. Embora pelo menos as duas gerações precedentes de escritores já escrevessem poemas em russo, eles interessam sobretudo a eruditos e curiosos. Já o próprio Púchkin e muitos dos que o seguiram têm alcance universal.
Por causa das vicissitudes da tradução e seu público maior, foi a prosa do país que, com autores como Gógol, Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev e Tchekhov, consagrou-se no exterior. Aos poucos, porém, a obra de Púchkin está sendo vertida para o português. A publicação em 2010 de "Noites Egípcias e Outros Contos" e do romance em versos "Eugênio Oneguin", sua criação mais ousada, original e popular entre seus conterrâneos, é um marco editorial no Brasil.
Aleksandr Serguêievitch Púchkin (1799-1837) nasceu em Moscou, onde passou a infância. Orgulhava-se de sua família, descendente da antiga nobreza russa, mas a sua principal experiência formativa foram os anos no Liceu Imperial (1811-17), progressista e de elite. Formado, estabeleceu-se em São Petersburgo e, levando uma vida agitada de boêmio e mulherengo, pôs-se a produzir uma obra que, precocemente madura, logo o tornou conhecido.
Os anos de liceu coincidiram com aqueles durante os quais a Rússia, devido às guerras napoleônicas, entrara abruptamente em contato com o resto da Europa. Muitos dos jovens aristocratas do corpo de oficiais do Exército que derrotara Napoleão e o perseguira até a França atestaram o contraste entre o avanço francês e a estagnação na qual, um século depois dos esforços modernizadores de Pedro, o Grande, a Rússia continuava imersa. A fermentação política resultante se espalhou através de sociedades secretas e conspiratórias cujo programa mínimo era abolir a servidão e substituir o regime absolutista pela monarquia constitucional.
Individualista, irreverente e zombeteiro, o poeta expressava tais ideias em odes, sátiras e epigramas. Circulando manuscritas e de mão em mão, suas críticas ferozes ao poder chamaram a atenção e lhe renderam anos de exílio em outras regiões do império. No entretempo, em dezembro de 1825, seus amigos conspiradores -os dezembristas- ensaiaram uma rebelião, facilmente desbaratada.
Púchkin foi o primeiro escritor profissional da Rússia, vale dizer, o primeiro a ser bem pago por seus livros, mas nem o que ganhava com a literatura nem suas outras fontes de renda bastavam para sustentá-lo no nível que julgava adequado. Quando, em 1831, casou-se com uma beldade, Natália Nicoláievna Gontchárova -a qual, 13 anos mais jovem e com pouca fortuna familiar, apreciava o luxo, as festas e a vida na corte-, a situação piorou. Seus últimos anos foram atormentados por dívidas, depressões e ciúmes.
Em 1835, o barão Georges D'Anthès, aristocrata francês que vivia na Rússia, passou a cortejar Natália, e, sem evidência de traição, os rumores começaram a circular. A gota d'água chegou, em fins de 1836, sob a forma de uma carta anônima que, congratulando o poeta por ter sido eleito "vice-grão-mestre da ordem dos cornudos", levou-o a desafiar o francês ao duelo fatal.
Durante os 20 anos anteriores, Púchkin fundara, ou melhor, inventara toda uma literatura que, antes dele, a rigor não existia: a russa. Mas o que significa inventar uma literatura? Não é somente escrever algo que não tenha sido escrito ou ensaiar um gênero ainda não experimentado em determinada língua.
Praticamente sozinho, o poeta teve que tomar inúmeras decisões, das menores às maiores, fazer centenas de escolhas, optar por tais ou quais modelos que pudessem ser, pela primeira vez, copiados, melhorados, deturpados etc. numa língua, numa tradição e num meio literário virgens, sem poder recorrer a precedentes bons ou ruins.
Quem inventou o soneto na Itália medieval não escreveu o primeiro grande soneto: este levaria ainda um século para surgir. Púchkin escreveu o primeiro grande soneto russo, a primeira grande balada, a primeira grande epopeia, a primeira grande tragédia, os primeiros grandes epigramas, os primeiros grandes poemas amorosos, os primeiros grandes contos, o primeiro grande romance histórico, e assim por diante. O admirável é que, quase sempre, ele escreveu tanto o "primeiro" de cada gênero quanto o "primeiro grande". Um deles, "Eugênio Oneguin" [trad. Dário Castro Alves, Record, 288 págs., R$ 47,90], mais que apenas "primeiro" e/ou "grande", é único e universal.
Chamá-lo de romance em versos é reducionista, já que não se trata de um romance qualquer nem de versos quaisquer. A trama, de uma simplicidade quase arquetípica, não é menos densa do que as de Turguêniev. Salvo o protagonista -o jovem Eugênio que, cansado do esplendor da cidade, vale-se de uma herança para experimentar a vida calma e isolada no campo-, os demais personagens são delineados com poucos mas precisos traços, numa concisão de fazer inveja a Tchekhov.
É complexa a relação entre o aspecto de prosa e o de poesia, mas talvez nela se encontre o que a obra tem de mais singular. Asseguram os críticos e leitores russos que a escolha e ordem das palavras, bem como todo o fraseado, não seriam diferentes se "Eugênio Oneguin" tivesse sido escrito em prosa, como se o autor não fizesse nenhum esforço para chegar ao virtuosismo verbal tanto da metrificação e do ritmo uniforme como da disposição constante das rimas e das estrofes.
Não há no livro nada de "poético", exceto o fato de que é poesia. "Eugênio Oneguin" compõe-se de quase 400 estrofes regulares (algumas fragmentárias) e alguns poucos excursos irregulares. Cada estrofe é uma espécie de soneto, com 14 versos rimados de oito sílabas métricas, de modo que o conjunto se apresenta, ao mesmo tempo, como um romance, um poema longo e um ciclo de sonetos, quase todos eles passíveis de serem lidos e apreciados isoladamente.
Elementos díspares se combinam de modo inusitado. A descrição das iguarias numa mesa de jantar não é menos importante nem menos cativante do que o relato de um duelo. Apesar de o crítico oitocentista Vissárion Belínski ter, com justiça, chamado o livro de "enciclopédia da vida russa", ele é antes uma coleção de tudo o que interessava ao autor e um mostruário de suas habilidades poéticas e narrativas.
Púchkin trabalhou no "Eugênio Oneguin" de 1823 a 1831. Dário Moreira de Castro Alves, que levou mais de dez anos na primeira versão do livro para o português, morreu em 6/6/2010, em Fortaleza, logo após sua publicação. A tradução reproduz tanto o conteúdo do romance quanto sua versificação, e isto já pode ser considerado uma contribuição valiosa para o repertório de nossa língua.
No que diz respeito à qualidade poética do resultado, porém, há muito o que discutir. Convém, todavia, observar que são poucas as línguas que contam com uma tradução realmente notável dessa obra: o inglês e o alemão só o conseguiram depois de várias tentativas, no correr de décadas. A presente versão é a primeira, mas ainda não a "primeira grande".
A edição de bolso "Noites Egípcias e Outros Contos" [trad. Cecília Rosas, Hedra, 156 págs., R$ 18] é uma bem-apresentada seleção dos contos menos conhecidos de Púchkin, quase todos inéditos no Brasil. O autor compartilhava com os prosadores do romantismo europeu de uma fascinação pelo exótico e pelo fantástico, patente em seus poemas narrativos e na sua prosa de ficção. De resto, como se pode constatar nesses contos, ele tampouco se contentava com as formas e os padrões estabelecidos nem parava de experimentar ideias e formas, o que faz do volume uma espécie de laboratório literário. De acordo com seu compatriota Joseph Brodsky, o poeta, quando morreu, pretendia se dedicar cada vez mais à historiografia -ótimo antídoto para os excessos da imaginação romântica.
Desde sua morte precoce no duelo com D'Anthès, Púchkin tem sido idolatrado pelos russos, e raros são os autores importantes dos séculos 19 ou 20 que não tenham escrito sobre ele. Nem por isso são eles seus intérpretes mais lúcidos, o que se verifica nos textos exaltados que Dostoiévski lhe dedicou: nada revelam do jovem e supremamente talentoso dândi despreocupado e até meio frívolo; mas muito das paixões e obsessões do autor de "Crime e Castigo".
Estudando-o cedo na escola e absorvendo-o como fundador e centro de sua tradição literária, é provável que nem mesmo a maioria dos russos disponha do distanciamento necessário para julgá-lo. Talvez caiba ao leitor estrangeiro, à sua maneira, descobrir quanto de original e surpreendente Púchkin produziu.

Púchkin escreveu o primeiro grande soneto russo, a primeira grande balada, a primeira grande epopeia, a primeira grande tragédia, os primeiros grandes epigramas, e assim por diante


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