São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2010

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ENSAIO

O melhor dos tempos, o pior dos tempos

Artes visuais nos EUA de Obama

RESUMO
A chegada de Barack Obama ao poder em 2008 representou uma nova maioria cultural, "pós-negra", que se reflete nas artes visuais, no hip-hop, na indústria cultural e na publicidade. Neste ensaio exclusivo para a Ilustríssima, Jeff Chang discute avanços e impasses da visualidade na era Obama e os valores raciais nela contidos.

Deco Farkas


JEFF CHANG
tradução JUVENAL PACHECO

DURANTE BOA PARTE DE 2008, a imagem que mais chamou a atenção nos Estados Unidos foi uma serigrafia do artista Shepard Fairey, reproduzida em cartazes, adesivos e roupas. A imagem era a foto de um homem em preto e branco, reproduzida em vermelho, branco e azul. O nome do homem era Barack Obama e a palavra de quatro letras escrita sob a sua imagem era HOPE ("esperança").
Obama, é claro, era o candidato à Presidência que tinha saído dos mais remotos limites geográficos e culturais dos EUA, a fronteira do país no Havaí, em pleno Pacífico, para conquistar a indicação do Partido Democrata para as eleições presidenciais. Falava em juntar os pedaços de um país dividido. Num discurso feito em março, "Uma União mais Perfeita", ofereceu sua herança mestiça -a união da história negra e da história branca em seu próprio corpo- como símbolo da reconciliação.

LUTHER KING Aquele pronunciamento, hoje conhecido como "o discurso sobre a raça", foi, sob certos aspectos, tão histórico quanto o de Martin Luther King Jr., "Eu Tenho um Sonho", feito no Lincoln Memorial quase 45 anos antes. "As complexidades da questão racial que jamais conseguimos superar realmente", disse Obama, seriam "uma parte de nossa união que ainda precisamos aperfeiçoar". Parecia dizer que, se os americanos fossem capazes de avançar na questão racial, seriam capazes de superar qualquer coisa.
Desde o auge do movimento pelos direitos civis, nos anos 60, até a era da globalização, passando pela Guerra Fria, os EUA anunciaram a inclusão como um dos valores centrais da sua versão da democracia. Ainda assim, qualquer estudante da história do país sabe que a realidade da "questão racial" sempre traiu a imagem que os EUA fazem de si mesmos.
A raça está na origem de 400 anos de cisma civil e cultural e levou o país à beira da dissolução. A raça, outra palavra de quatro letras, ainda é o mais problemático dos fatores que nos separam uns dos outros. Assim, quando a candidatura de Barack Obama começou a ganhar força em 2008, alguns estudiosos viram nisso um sinal da dissipação do rancor em relação à questão racial.
Obama descartou essa ideia no "discurso sobre a raça", dizendo: "Nunca fui ingênuo a ponto de acreditar que seremos capazes de superar nossas divisões raciais no ciclo de uma única eleição, nem com uma única candidatura". Mas o triunfo dele foi épico. Empolgados com a vitória histórica de um presidente negro mestiço, muitos declararam que os EUA teriam inaugurado uma era "pós-racial".

INDIGNAÇÃO Mas, no verão de 2009, ao dizer numa coletiva de imprensa que policiais brancos acusados de maltratar o famoso professor negro Henry Louis Gates num incidente local tinham "agido com estupidez", Obama provocou a indignação nacional. O apresentador de TV Glenn Beck, um conservador, chamou Obama de "racista", acusando-o de nutrir um "ódio profundo pelos brancos e pela cultura branca".
Recentemente, o governo Obama demitiu a funcionária negra Shirley Sherrod depois que um blogueiro conservador a acusou de ter feito comentários contra os brancos em discurso à NAACP, sigla para Associação Nacional para o Progresso da População de Cor. Shirley -cujo pai foi assassinado por racistas brancos- falava do seu próprio processo de superação do preconceito contra os brancos, e o governo tentou apressadamente recontratá-la.
Naquele verão, a oposição às propostas de Obama foi mobilizada por maldisfarçadas imagens racistas. Em 2009, membros do movimento de extrema direita Tea Party protestaram contra o pacote de reformas para o sistema de saúde proposto pelo presidente com cartazes nos quais Obama foi retratado como curandeiro.
Outros difundiram o boato de que ele seria muçulmano, ou que não teria nascido como cidadão americano, histórias que cristalizavam sua crença no que enxergam como o indissociável caráter estrangeiro do presidente.

AGRESSIVIDADE Dois anos depois da eleição de Obama, as manifestações raivosas envolvendo a raça atingiram uma velocidade e agressividade que não víamos desde as "guerras culturais" da década de 80 e início da de 90.
Ao mesmo tempo, nunca houve um momento histórico no qual os não brancos fossem mais visíveis. Com Obama e sua linda família como apoteose, as imagens na mídia americana mostram-se mais multirraciais do que nunca, e com orgulho. Nossa cultura visual ganhou tons de pele.
Exemplo disso é o sabidamente exclusivo mundo das artes. No fim da década de 60, artistas negros protestaram contra museus e galerias que se recusavam a exibir suas obras. Na década de 90, alguns artistas negros começaram a invadir o fechado mundo da arte, provocando grande controvérsia. A Bienal de 1993 do Museu Whitney de Arte Americana, em Nova York, uma das exposições mais desprezadas pelos críticos nos últimos 50 anos, trouxe a mais variada representação de artistas do sexo feminino e artistas negros já vista até então.

PÓS-NEGRO Está em curso uma reinterpretação daquele momento. Numa brincadeira, a curadora Thelma Golden e o artista Glenn Ligon cunharam, na década de 90, o termo "pós-negro", para descrever uma nova geração de artistas negros pós-multiculturalistas.
"O pós-negro é o novo negro", foram as célebres palavras escritas por Thelma. Os dois se transformaram em superastros do mundo da arte, assim como outros de sua geração -entre eles, Kara Walker, Julie Mehretu, Mark Bradford e Gary Simmons.
A mais bem-sucedida campanha publicitária deste ano foi estrelada por Isaiah Mustafa, negro de beleza notável, em comerciais para o sabão líquido da Old Spice intitulado "O homem cujo cheiro seu homem poderia ter".
Estudos mostram que as mulheres são responsáveis por 70% das vendas de sabão líquido, e por isso Mustafa, atuando como "garoto-propaganda da Old Spice", abre os anúncios com um animado "Olá, garotas!". Em seguida, comenta suas qualidades físicas com a voz grave de ator shakespeariano. Começa o anúncio usando apenas uma toalha e -em meio a mudanças de cenário que o transportam rapidamente do banheiro até um iate e depois para o dorso de um cavalo branco- permanece seminu o tempo todo.
A recepção ao anúncio foi surpreendente. Sua incontrolável popularidade na internet fez com que a gigante corporativa Procter & Gamble encomendasse 185 novos vídeos com o garoto-propaganda da Old Spice, numa resposta direta a mensagens recebidas via Twitter, blogs e e-mails de fãs. Os ví-deos foram assistidos milhões de vezes no YouTube. Em todos eles, Mustafa aparece sem camisa.

DESAFIO Katie Abrahamson, porta-voz da Wieden+Kennedy, agência que produziu os anúncios, negou que a escolha de Mustafa seja uma decorrência da raça dele. "A verdade é que Isaiah estava entre centenas de atores que fizeram testes-padrão e simplesmente foi escolhido por apresentar a melhor interpretação e por parecer mais adequado à proposta do anúncio -não teve nada a ver com a cor de sua pele", disse ela. "O desafio foi encontrar alguém capaz de falar a ambos os gêneros."
Será que um branco atraente, dotado de igual talento cômico, mostrado seminu no banheiro, teria atraído tanta atenção? A figura que mais se assemelharia ao bem-humorado, desebanizado e confiante (sem que esta confiança pareça ameaçadora) garoto-propaganda da Old Spice seria a do próprio Barack Obama, que certa vez, capturado nas praias havaianas pelas lentes dos paparaz-zi, apareceu na capa de um tabloide sob a manchete: "Preparado para liderar: sarado, Obama é garanhão havaiano".
A publicidade se misturou à política quando, num dos vídeos subsequentes, o garoto-propaganda da Old Spice respondeu a uma pergunta do apresentador de TV e ex-conselheiro democrata George Stephanopoulos. O que Obama deveria fazer, perguntava Stephanopoulos, para parar de afastar o voto do eleitorado feminino?
Mustafa aconselhou Obama a "daqui em diante ser visto apenas de toalha" e a abrir seus discursos sobre o Estado da União com "Olá, garotas!". Se as coisas ficassem difíceis mesmo, bastava lembrá-las das qualidades de seus "abdominais presidenciáveis".

HISTÓRIA Uma imagem inesquecível da história americana é a do corpo mutilado de Emmett Till, adolescente negro brutalmente torturado e assassinado em 1955 por dois brancos no Mississippi, por supostamente ter assoviado para uma moça branca. A mãe de Till insistiu que o funeral ocorresse com o caixão aberto -"Queria que o mundo visse o que fizeram com meu bebê"-, e as fotos de Till chocaram o país e deram início ao movimento pelos direitos civis. Naquela época, a imagem de um negro sem camisa poderia ter provocado distúrbios raciais.
Há 25 anos, as fotos de Robert Mapplethorpe retratando homens negros nus escandalizaram o mundo da arte e catalisaram uma reação conservadora contra o financiamento do governo às artes. (Ligon explorou as questões levantadas pelas fotos de Mapplethorpe na sua obra para a Bienal de 1993 do Museu Whitney.) A era das "guerras culturais" foi dominada por debates e disputas políticas.
Mas então o movimento hip-hop -com suas imagens de orgulhosos e desafiadores jovens negros e latinos- redefiniu o "cool" multicultural, ajudando a transformar a indústria cultural americana para um mundo jovem cada vez mais mestiço. O hip-hop ajudou a conferir tons de pele à cultura, num processo que se deu de baixo para cima. Hoje, a imagem de um homem negro inteligente, confiante e bonito representa o epítome do sexy, o produto mais avançado do "mainstream" cultural.

OPORTUNIDADES Estas mudanças criaram oportunidades sem precedentes para pessoas de cor. "A verdade é que a maioria das pessoas que compram as minhas obras não é composta por negros americanos, e o hip-hop em geral vive a mesma situação", admite Ligon, com ambivalência quase imperceptível. Assim como a história da música, a história da cultura visual dos EUA pode ser escrita como a história do fim da segregação. Por quê, então, os EUA apresentam agora um rancor renovado em relação à questão racial?
A população americana passa por uma mudança paradigmática. Em decorrência da imigração, os não brancos superam os brancos em 4 dos 50 Estados. Em uma década, a maioria dos jovens americanos será composta por não brancos, e o restante da população do país deve atingir essa marca em meados do século.
Dada a sua influência cultural, não faz mais sentido referir-se aos não brancos como "minorias". Ainda assim, a população de maior influência política, a geração do pós-guerra conhecida como "baby boom", é de 75% de brancos. O demógrafo William Frey chama o fenômeno de "abismo cultural entre as gerações".
Nas eleições de 2008, as diferenças entre raças e gerações se combinaram como nunca. Obama perdeu o voto dos brancos e do eleitorado com idade superior a 65 anos, ficando com a metade dos votos dos "baby boomers", mas chegou à Presidência forjando uma nova maioria cultural. Mais de dois terços dos americanos com menos de 30 anos, os hispânicos, os asiáticos e os impressionantes 96% de eleitores negros votaram nele. Obama também obteve boa margem entre os eleitores de 30 a 44 anos, os gays e as mulheres.

ESTRATÉGIA SULISTA O adversário de Obama nas eleições, John McCain, sempre desprezou os ataques de viés racial que se tornaram comuns na política americana. Mas nem por isso os EUA escaparam de seu longo histórico de exploração da raça para amplificar a ansiedade dos brancos. Desde o consenso dos direitos civis dos anos 60, a questão racial tem sido o "tema divisor" recorrente que põe fim à discussão racional.
Em 1968, a vitória presidencial de Richard Nixon fez nascer a "estratégia sulista" -jogar com medos raciais para realinhar democratas brancos aos republicanos. Para obter apoio aos cortes nos programas sociais e à expansão do sistema prisional, Ronald Reagan evocou imagens de não brancos que se aproveitavam do sistema de bem-estar social e de jovens gângsteres. Até Bill Clinton teve seu momento "Sister Souljah", criticando a rapper por supostos comentários contra os brancos.
A recente temporada eleitoral testemunhou o retorno do divisor racial e o triunfo dos mitos sobre os fatos. No Arizona, a governadora reuniu apoio para a aprovação de drásticas leis contra a imigração recorrendo à imagem fictícia de cadáveres de inocentes decapitados, deixados no deserto por criminosos de origem latina.
Em Nova York, conservadores atacaram a proposta de construção de um centro cultural islâmico moderado ao associá-la aos ataques de 11/9 e ao extremismo árabe. A Secretaria da Educação do Texas aprovou mudanças nos livros de história usados por 5 milhões de alunos, amenizando a história da escravidão no país e enfatizando uma "visão mundial bíblica", nas palavras de um dos membros do comitê, na qual os EUA seriam "um país escolhido por Deus para ser um farol na colina e servir como luz da esperança e da clareza cristã para um mundo perdido e moribundo".

PARADOXO Sob muitos aspectos, quatro décadas de recuos impostos pelo avanço dos direitos civis deixaram o país mais dividido pelas opiniões a respeito da raça. Uma explosão fez com que a população carcerária triplicasse nos últimos 25 anos, totalizando 2 milhões de pessoas -o maior número de detentos de todo o mundo.
Quase 70% dos prisioneiros não são brancos. Na recessão econômica atual, a proporção de pobres entre os latinos e asiáticos aumentou muito. Menos examinado, mas considerado mais preocupante por muitos estudiosos, é o aumento nos casos de segregação nos bairros e nas escolas. John A. Powell, do Instituto Kirwan para o Estudo da Raça e da Etnia da Universidade do Estado de Ohio, alerta para o risco que essas tendências representam: se não forem revertidas, podem dilacerar o tecido social nas próximas décadas.
Eis o paradoxo da "era pós-racial": enquanto nossas imagens mostram um país otimista, avançando na direção da igualdade e do fim da segregação cultural, nossa política reflete um profundo pessimismo e nossos índices sociais revelam um retorno cada vez mais acentuado da segregação e da desigualdade racial. O grupo de hip-hop The Roots chama nossa época de "era pós-esperança".

MARQUETEIROS "Sabemos que este país está se tornando cada vez mais diversificado", diz Cornell Belcher, encarregado de realizar pesquisas de opinião para Obama. "Os marqueteiros já entenderam. Os vendedores de tênis já entenderam. Os vendedores de Coca-Cola já entenderam. Mas, do ponto de vista político, ainda não entendemos esta mensagem."
Belcher destaca que os mais diferentes americanos costumam compartilhar certos valores que definem o país: liberdade, justiça, oportunidade, igualdade. "No entanto, é aí que reside o problema da igualdade", diz ele. "Em certos grupos, isto dá início ao seguinte raciocínio: 'Eles estão tentando obter igualdade, o que significa que eu vou perder alguma coisa'. É preciso tomar muito cuidado para não despertar este tipo de medo e cair no 'nós vs. eles'."
Quando Obama preencheu o formulário do censo deste ano e assinalou sua raça como "negra ou afro-americana", foi criticado por ignorar seus antepassados brancos. Mas alguns acreditam que sua resistência em falar tão abertamente sobre a questão racial quanto na época de sua candidatura resultou em políticas que fingem ignorar os tons de pele e estão alienando ainda mais as comunidades de cor.
"O governo Obama parece ter aprendido que falar sobre a questão racial é o caminho para a derrota. Mas qual seria a pauta positiva para um futuro multirracial?", pergunta Powell. "Devemos tomar como modelo o Arizona? Ou quem sabe o Texas?"

NÉON Em 2011, outra imagem -que dificilmente será tão contagiante quanto o pôster da esperança e os comerciais da Old Spice, embora igualmente intrigante- poderá se ver no centro de um debate nacional. A retrospectiva de meados da carreira de Glenn Ligon, a ser montada no ano que vem no Museu Whitney de Arte Americana, provavelmente incluirá sua escultura da palavra "América" feita com luzes de néon. Ele pintou de preto a superfície das letras, de modo que a luz -cuja intensidade varia lentamente- só possa ser projetada para trás.
Agora que Obama é o presidente, Ligon brinca dizendo que os críticos provavelmente interpretarão sua recente obra de maneira excessivamente literal. "A América negra", grunhe ele, "blá-blá-blá".
Mas Ligon diz que criou essas obras antes da eleição de Obama, quando leu a respeito de uma criança no Afeganistão, sentada em meio aos escombros de sua casa e invocando os EUA a honrarem seus ideais democráticos. A outra inspiração, diz ele, foi a célebre frase que abre "Um Conto de Duas Cidades", de Charles Dickens: "Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos".

Com Obama e sua família, as imagens na mídia americana mostram-se mais multirraciais do que nunca, e com orgulho. Nossa cultura visual ganhou tons de pele

Hoje, a imagem de um homem negro inteligente, confiante e bonito representa o epítome do sexy, o produto mais avançado do "mainstream" cultural

Enquanto nossas imagens mostram um país otimista, avançando na direção da igualdade e do fim da segregação cultural, nossa política reflete um profundo pessimismo


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