São Paulo, domingo, 05 de junho de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Drummond, poeta cidadão

Jureia, 1980

ECLÉA BOSI

A reserva florestal da Jureia, entre Peruíbe e Iguape, foi ameaçada em 1980 pela construção de duas usinas nucleares. Era o ocaso da ditadura, mas a população reagiu. O desastre da usina de Three Mile Island, nos Estados Unidos, no ano anterior, corria vivo na memória de todos.
Nesse momento, o Movimento em Defesa da Vida, de que eu participava, fez um apelo ao poeta Carlos Drummond de Andrade. Ele respondeu com um artigo admirável, chamado "Se Eu Fosse Deputado", que foi publicado no "Jornal do Brasil" em 21 de junho de 1980. Em seguida, me escreveu dizendo que havia cumprido sua missão. E perguntou se estava a contento.
Em seus argumentos, o poeta mostrou estar informado por eminentes cientistas. O texto se concentrava nos efeitos das radiações nucleares sobre o organismo humano.
Conheci nessa ocasião outra face da poeta: a do interesse pelo outro, da generosidade. E ficou então provada a relação da poesia com a profecia, pois o artigo antecedeu em seis anos o desastre de Chernobyl.
A certa altura, Drummond se espanta ao constatar que a decisão sobre a realização da obra tenha sido entregue a um "pequeno grupo de homens do governo e tecnoburocratas", regido pela lógica da rentabilidade.
E, depois de afirmar que o teor do documento que lhe fora encaminhado pelo movimento, "terrível", fazia "perder o sono" e deixava a consciência em "estado de guerra", reproduz um trecho do mesmo:
"Em 1957, na Inglaterra, um erro humano provocou o vazamento de radioatividade de um reator, [...] e obrigou o governo a jogar fora todo o leite produzido numa área de 500 km de distância do reator. Para comparação: o Rio de Janeiro está a 133 km de Angra dos Reis.
Descobriu-se no leite a presença do radioativo césio-137, que se incorpora no organismo através do ciclo solo-capim-vaca-leite. O césio emite raios-gama penetrantes, que induzem a formações cancerosas."
Drummond dá prosseguimento ao raciocínio recorrendo, mais uma vez, ao material produzido pelo grupo que se opunha à construção das usinas. Dali, saca a informação de que a concentração média de elementos cancerígenos no leite aumenta na proporção em que se torna mais ativa a política nuclear. Para robustecer sua explanação, ele cita outros vazamentos, como aqueles ocorridos no Colorado em 1969, e em West Valley, Estado de Nova York, entre 1966 e 1972.
Não existe risco zero. Os acidentes conhecidos desmoralizam o mito da infalibilidade das usinas nucleares. Ainda hoje, a pergunta me persegue: como retirar os moradores de Angra em caso de vazamento? Por terra, por ar, por mar? Drummond conclui:
"Se eu fosse deputado, a esta hora, perderia o sono pensando nos riscos impostos ao país [...] Mas é preciso ser deputado para sentir o peso atroz dessa ameaça? Eu, homem do povo e escrivão público, participo desse terror."
Essas palavras nos encorajaram a realizar novas passeatas e fazer circular abaixo-assinados. Protestamos nas ruas. Guardo ainda a faixa ferida pelos ventos de tantas passeatas.
Tão comovente declaração do nosso Drummond não caiu no esquecimento. Agora, outro poeta maior, Ferreira Gullar, e um artista como Chico Buarque se insurgem contra as usinas nucleares.
Hoje, a Jureia é uma reserva florestal e uma fonte de beleza e de vida.


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