São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2010

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ANTROPOLOGIA

Horror e êxtase das multidões

Das sagrações religiosas à violência extrema

RESUMO
Da Roma antiga às torcidas de futebol dos nossos dias, a busca do êxtase coletivo é tema de dois livros que abordam faces opostas e complementares da dinâmica das multidões: as festas de rua (cujo exemplo contemporâneo é o Carnaval) e a destruição promovida pelas massas (os torcedores conhecidos como "hooligans").

MARIA LUCIA MONTES

PODE PARECER ESTRANHO aproximar a experiência de ver-se numa rua tomada por gente eufórica que dança ou por quem ali pratica atos gratuitos de violência. Mas a aproximação se impõe, diante de dois livros recentes, narrativas empolgantes que, distintas no tema e na abordagem, nos conduzem a insuspeitadas regiões da experiência humana.
Em "Dançando nas Ruas - Uma História do Êxtase Coletivo" [trad. Julian Fuks, Record, 378 págs., R$ 55], Barbara Ehrenreich nos dá uma visão incomum da história das religiões ao focalizar os ritos que, pela magia da música e da dança, levam à experiência do êxtase, no contato do homem com seus deuses.
Religiões de presença e possessão, diria o historiador Nicolau Sevcenko, contrastando-as com as religiões de representação, em que a relação com o sagrado é mediada por um corpo de sacerdotes que reivindica o direito exclusivo de invocá-lo.
Desde o século 19, os antropólogos nos acostumaram a atribuir a povos "primitivos" e "selvagens" essas práticas, vistas como ímpias, devassas e repulsivas pelos colonizadores europeus espalhados pelo mundo. Na América, já se dizia o mesmo, no século 16, de nossos povos nativos, ou dos africanos aqui trazidos como escravos.
São discursos que retomam um imaginário de longa duração histórica, no qual sempre se confrontaram os "bárbaros" e a "civilização". Vistos em perspectiva, revelam um mesmo padrão, quer se trate dos cultos de Dioniso ou dos mistérios de Elêusis na Grécia, das saturnálias e dos deuses "orientais" cultuados em Roma, ou, já na Europa medieval, das danças "pagãs" praticadas nas igrejas e nos cemitérios, depois transformadas em celebrações profanas das ruas, festas dos loucos e dos inocentes, nas origens do Carnaval. São práticas religiosas que sempre atraíram mulheres, plebeus e gente do povo, mal toleradas ou abertamente combatidas pelos poderes religiosos e pelas elites políticas ou militares, até sua virtual supressão.
A Reforma e o puritanismo só viriam a acentuar a "impropriedade" dessas práticas voltadas ao êxtase coletivo, associadas ao excesso, à violência e à loucura. Mais tarde, o imperialismo confrontaria com armas os tambores rituais dos povos "primitivos" a serem "civilizados", e o fascismo se encarregaria de transformar em celebração cívica o êxtase profano da embriaguez do poder.
Múltiplos personagens ocuparam esses lugares do imaginário onde se defrontam barbárie e civilização, revelando apropriações surpreendentes, como no caso de Dioniso. Com sua coorte de bacantes inebriadas pelo vinho, dançando ao som de tambores e da flauta de Pã e de seus faunos, o deus despertava o terror de perder a consciência na voragem de violência das mênades que dilaceravam em fúria os corpos de suas vítimas.
Isto fez associar Dioniso ao demônio cristão, conferindo-lhe, inclusive, seus atributos animalescos, como chifres e pés fendidos. Contudo, é sobre a figura de Dioniso que se moldam também muitas das características do Cristo, filho de Deus e de uma Virgem Mãe, oferecido em sacrifício para a salvação dos homens, tal como o deus pagão, vítima sacrificial a seu modo, corpo desmembrado pelo ciúme de uma deusa vingativa e recomposto por uma avó mortal, alma tomada da loucura divina que o faz vagar pelo mundo, levando o milagre do vinho e da cura na exaltação festiva.
Deus-vítima e peregrino, curador de enfermos, Cristo, representado pelo peixe, como Dioniso pelo golfinho, era também, como o deus pagão, amante da paz e dos pobres. A imagem cristã incorporaria inevitavelmente os atributos da divindade arcaica.
Há uma corrente subterrânea que perpassa esta história do êxtase coletivo e que talvez melhor se compreenda à luz do livro de Bill Buford que acaba de ser reeditado no Brasil, "Entre os Vândalos - A Multidão e a Sedução da Violência" [trad. Júlio Fischer, Companhia das Letras, 328 págs., R$ 24]. Vista de perto e de dentro, também ali a violência está presente, na realidade contemporânea das torcidas de futebol da Inglaterra, novos "hooligans" que já aterrorizavam Londres em fins do século 19.
Americano não familiarizado com o que, para os nativos, parece uma evidência, Buford nos apresenta um relato quase etnográfico de uma verdadeira experiência de iniciação. Como pode um indivíduo comum se tornar parte de uma multidão e, nessa condição, praticar toda sorte de atos vis, sórdidos e infames, à margem de qualquer respeitabilidade?
Rios de cerveja, vodca e vinho barato, montanhas de "fish and chips" e tortas suspeitas, roupas engorduradas em corpos balofos que, vencidos pelo excesso, se deixam cair na rua e ali adormecem, roncando como porcos. A obscenidade de exibir aos passantes, pela janela de um ônibus, gordas nádegas nuas e palavras de baixo calão. Corpos que se espremem nos estádios, movendo-se como um só corpo, ao seguir os lances da partida. E, ao fim do jogo, a busca deliberada do confronto pelas torcidas, que se entregam a toda sorte de brutalidade contra quem acaso encontrem no caminho.
Estar entre os vândalos, converter-se em um deles: eis a experiência inaudita. E então descobrir que a violência da multidão não é caótica, mas ordenada por figuras que a própria multidão secreta, regentes de uma tensão que cresce a cada segundo, farejando no ar o momento em que já não haverá indivíduos, mas uma massa que age por si só: "A coisa vai explodir!". Sentimento que o partido de extrema direita National Front busca direcionar a um objetivo político, entre racismo, homofobia e o imenso potencial de violência da multidão.
Sentir uma falta indefinível, buscar um alívio contra algo que incomoda, grito mudo incapaz de se soltar, e então encontrar na violência uma espécie de plenitude, cedendo à ânsia pela indistinção, o desejo de acabar com tudo, perder-se de si, entre o pavor e a alegria. Eis o "abjeto", "aquilo de que o eu precisa livrar-se para ser um eu", como o define Julia Kristeva. Algo estranho e íntimo, para além do inteligível ou do legítimo, na fronteira do (des)humano, evidenciando a ambiguidade da transgressão: ultrapassar todo limite, destruir toda regra, violar todo tabu, para transcendê-los e reconfirmá-los, diz Georges Bataille.
Uma experiência que toca as fímbrias do sagrado, "confundindo" atração e repulsa, prazer e dor, eu e o outro, erotismo e violência: chafurdar na abjeção para dela emergir "consagrado". Como num rito sacrificial, reconhecer o valor simbólico da violência e da transgressão, ao romper a fronteira entre a vida e a morte. Pureza e perigo, o risco do contágio e a obrigação de livrar-se da profanação para que o sacrifício seja aceito.
As flautas e tambores que levavam as bacantes a dançar pelas ruas, na presença do sagrado, são substituídos pela sedução de uma violência abjeta da multidão que busca uma experiência de plenitude, no embate entre grupos identificados por símbolos do mundo profano do esporte espetáculo.
Sem o horizonte do sagrado, a cultura, em algumas sociedades contemporâneas, pode delegar à violência a função de levar a outro tipo, profano, de êxtase. Não por acaso, Barbara Ehrenreich evoca, ao encerrar sua narrativa, a possibilidade de renascimento, relembrando a alegria orgiástica de uma bateria de escola de samba ou banda local que ensaiava na rua arrastando o cortejo de uma pequena multidão que reaprende o significado sagrado da estar dançando nas ruas...
Eis o que revela a impossibilidade da cultura de completar-se em si mesma, porque repousa sobre esse fundo inominável da experiência humana, avesso dos códigos religiosos, morais e ideológicos de que dependem a consciência de um eu e a ordem das sociedades.

Como pode um indivíduo comum se tornar parte de uma multidão e, nessa condição, praticar toda sorte de atos vis, sórdidos e infames, à margem de qualquer respeitabilidade?

As festas religiosas sempre atraíram mulheres, plebeus e gente do povo. Eram mal toleradas ou abertamente combatidas pelos poderes religiosos e pelas elites políticas ou militares


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