São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O livro encarcerado

Curitiba, 1965

SYLVIO BACK

HÁ QUEM JURE de pés juntos que os autores, lá pelos idos de junho de 1965, fomos vistos sobraçando, mui orgulhosos, pela então rua 15 de Novembro (hoje, das Flores), em Curitiba, um exemplar da coletânea de contos "7 de Amor e Violência", que trazia uma tarja com a seguinte frase: "A primeira experiência ficcional que toma a 'revolução' (vai mesmo entre aspas, porque não se entende revolução sem povo) como pano de fundo, mostrando como ela repercutiu na palhoça do camponês esquecido e como reagiram os jovens angustiados de uma grande cidade". Quem a assinava era o crítico literário e contista Hélio Pólvora.
Uma denúncia anônima levou o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) a confiscar os últimos exemplares de uma tiragem de 1.500, abortando a segunda fornada já a caminho.
Tudo começou em fins de 64, com a ideia do jornalista e poeta Walmor Marcelino (recém-falecido aos 80), que nos convidou a ficcionalizar o golpe militar de meses atrás.
Foi dele também o projeto da capa, executada pelo pintor Álvaro Borges sobre foto de Chico Kava, de um colo feminino nu (hoje me pergunto: quem era essa gata?) e o título cabalístico.
Para despistar, Marcelino lascava na apresentação que os sete escribas (pela ordem do sumário, Elias Farah, Valêncio Xavier, Oscar Milton Volpini, Jodat Kury, Nelson Padrella, Sylvio Back e Walmor Marcelino) "não pertencem a um grupo literário ou orientação filosófica. Não têm origens e profissões afins; sequer moram no mesmo bairro".
Mas era inevitável: o visual parapornô da capa (uma faca -um pinheiro estilizado- que ameaça fincar-se num seio) e o miolo explícito nos entregavam ao primeiro folheio. As reações vieram a galope. De mão em mão, de porta em porta, de amigo para amigo, ou na Livraria Ghignone, ponto de encontro da intelectualidade descolada da época, o livro circulava e causava espécie.
Um misto da proverbial madrastice curitibana e da alcaguetagem então em alta ficou a nos assombrar dia e noite, contaminando o seleto grupo de ilustradores do livro, Luiz Carlos de Andrade Lima, Jair Mendes, Maurício Távora, Álvaro Borges, Thomas Wartelsteiner (Xavier e Padrella, autoilustrando-se, sofriam duplamente). Cada um de nós esperava que um milico batesse à porta intimando a depor, como viria a ocorrer dois anos depois.
Acusados de subversivos num inquérito policial militar (IPM) por crime de opinião, o Exército arrolou a nossa participação em "7 de Amor e Violência" como peça de acusação! Felizmente, um providencial habeas corpus às vésperas do AI-5 livrou da execração censória os signatários daquela frágil literatura de combate, cuja sobrevida era (e é) uma vitória da liberdade de expressão.
Como esquecer? A foto que saiu nos jornais, escancarando os livros apreendidos, um deles aberto bem no meu conto, "Os Caranguejos" -fábula surrealista em que militares são transformados em crustáceos assaltando uma jogo de futebol-, me levou às lágrimas, nem sei mais se de pavor, tristeza, revolta, ou tudo junto. Nos anos 90, alguém flagrou nos porões da polícia paranaense meia dúzia de exemplares novinhos em folha.
Com essa notícia, não pude deixar de viajar à infância de filho de imigrantes fugidos da Alemanha hitlerista. Flagrei-me revendo as invasões de agentes do Dops à nossa casa em Curitiba, durante a guerra. Subiam e desciam escadas, abrindo cômodos, gavetas, remexendo roupas em busca de um improvável rádio transmissor, insinuando que o pai, judeu húngaro, e a mãe, alemã, fossem agentes da quinta-coluna nazista.
Muito "zelosos", com ar de dever cumprido ante o terror e a impotência de todos, levavam dezenas de encadernações escritas em alemão gótico (Thomas Mann, Nietzsche, Goethe e Schiller) e a obra do imaginário Velho Oeste de Karl May (onde estarão essas joias literárias?). Os geniais desenhos de Wilhelm Busch, de 1865, pioneiro das histórias em quadrinhos, eu escondera no porão da casa, tremendo feito vara verde, num escaninho indevassável para torquemadas com ganas de prender Juca e Chico ("Max und Moritz").
Como registrou poeticamente Valêncio Xavier no posfácio de uma reedição que saiu 20 anos depois: "O que somos hoje não interessava ontem".


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