São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2011

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DIÁRIO DE CARACAS
O MAPA DA CULTURA

Perfurando, tudo dá

A política que há na vida boêmia

FLAVIA MARREIRO


ESTÁ EM CARTAZ a peça "Petroleros Suicidas", na qual o dramaturgo caraquenho Ibsen Martínez revela, ecoando Balzac, a vida privada do Petroestado caribenho.
O cenário é a greve da PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A., a estatal petroleira que sustenta o país) contra Chávez, em 2002-2003. A trama parte do rumor que corria, então, sobre uma suposta onda de suicídios de altos executivos da companhia, vários deles demitidos por Hugo Chávez ao vivo na televisão.
Influente colunista e autor de telenovelas, Martínez mescla humor negro e thriller na história de um casal de funcionários da empresa separado pelo adultério e pela filiação política.
Ela é demitida pelo chavismo, e ele, promovido pela revolução. "Por que o petróleo envenena?", pergunta-se a dupla ao se encontrar, dez anos depois, no aeroporto de Nova York.
A luta pela boquinha na megaestatal e a moral dupla dos personagens abarcam o espectro político e temporal de ponta a ponta -o que irritou chavistas, mas especialmente ex-funcionários da PDVSA, que esperavam de Ibsen Martínez, um crítico ferrenho do governo, alguma solidariedade.
A plateia do rico leste caraquenho escuta, incômoda: os suicidas petroleiros são lenda urbana; já as mortes de operários chineses que fabricam seus iPhones e o iPads não são.

LUTE, MAS DANCE PRIMEIRO
A festa de Halloween é em um clube exclusivo da capital da Venezuela, com fantasias superproduzidas e zero ironia política -fantasiar-se de Che Guevara ou de chavista não tem graça nenhuma para a elite caraquenha. Toca house bate-estaca, e então uma música densa e dançante levanta o público. É "Radio Capital", da jovem banda local La Vida Bohème.
Sucesso indie que ganhou as redes sociais do país, o grupo que se infiltra nas festas de playboys surpreendeu ao emplacar duas indicações ao Grammy Latino, a ser entregue nesta quinta, em Miami.
Criado há três anos, o quarteto concorre nas categorias melhor álbum de rock e melhor canção de rock, justamente para "Radio Capi tal".
O disco de estreia, "Nuestra", remete ao pós-punk eletrônico das bandas americanas LCD Soundsystem e Rapture e tem letras nas quais se colam críticas políticas, como em "Nicaragua" ("Ahora marcho sin rumbo, cariño/ cantando canciones de falsa revolución"). Saiu em maio no mercado americano pelo selo Nacional, especializado em produção latina.
Foi de onde a banda saltou para compor a trilha da versão 2012 do game da Fifa. La Vida Bohème também é finalista do concurso "A Melhor Nova Banda do Mundo", da MTV Iggy (mtviggy.com), plataforma on-line, lançada há pouco pelo canal americano, com foco na nova música indie mundial. "Levante e lute, mas dance primeiro", diz o site para resumir "Nuestra".

VIA SKYPE
Em outro palco da cidade, a toada política é mais soft, mas não menos representativa, embalada na comédia "stand-up" "Mi País, Tu País".
Assim como no Brasil, o formato é febre por aqui, e o espetáculo tem a mão dos talentosos humoristas do site El Chigüire Bipolar (elchiguirebipolar.net). Um dos quatro artistas em cena é George Harris, que, via Skype, de Miami, zomba da diáspora que deixa o país a bordo do voo mais barato.
O elenco é integrado por ninguém menos que o professor de oratória do concurso Miss Venezuela, outra instituição nacional. José Rafael Briceño reclama de como é difícil ensinar mulheres mortas de fome, mas também não perdoa a gorda de lycra no metrô.

GARIMPO
O controle cambial na Venezuela restringe até a compra de livros pela Amazon -um venezuelano sem conta no exterior tem uma cota de US$ 400 (o equivalente a R$ 695)para compras por ano pela internet e só.
Nas estantes das boas livrarias, cujo número em Caracas não completa os dedos de uma mão, a situação não é muito melhor. Mas existe um garimpo que vale a pena: explorar as estatais Librerías del Sur espalhadas pela cidade.
Poesia latino-americana e literatura acadêmica -esquerdista-estão disponíveis a preços irrisórios. As unidades dispõem do orgulho editorial nacional, os livros da Biblioteca Ayacucho, coleção lançada em 1974 com clássicos da história e da literatura latino-americanas, da Argentina ao México.
Uma boa coletânea de contos de Machado de Assis em espanhol pode ser encontrada pelo equivalente a R$ 10. Muitos, incluindo o Machado, estão disponíveis em formato PDF no site da coleção, bibliotecayacucho.gob.ve.


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