São Paulo, domingo, 10 de abril de 2011

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Nossa má fama nos precede

Ponta Grossa, 1984

Arquivo do grupo Cemitério de Automóveis
Roberto Virginio, Celso Mattos e Mário Bortolotto em debate após "Feliz Natal, Charles Bukowski" (QMNS)

MÁRIO BORTOLOTTO

Foi assim. Ano de 1984. Eu tinha 22 anos, e o Festival de Teatro de Ponta Grossa (PR) era o primeiro de nível nacional de que o nosso grupo (o Cemitério de Automóveis, à época ainda Chiclete com Banana) iria participar. Fomos selecionados para representar o Paraná, com "À Meia-Noite um Solo de Sax na Minha Cabeça". Ninguém até ali tinha ouvido falar de nós.
Apresentamos a peça, e até que foi bacana. O público parecia ter curtido o espetáculo de recursos modestos, sem cenário, figurinos nem efeitos de luz; apoiado apenas na interpretação e no texto.
Acontece que, nos festivais de teatro, era comum haver debates com o público e o júri após o espetáculo. Era assim: a gente se sentava na beirada do palco e, armado com um microfone, discorria sobre o trabalho e ouvia as opiniões do júri. Na sequência, vinham as opiniões do público e até algumas discussões, se fosse o caso.
Como convidada especial do festival naquele ano, havia uma decana do teatro brasileiro, a sra. Luiza Barreto Leite. Eu não entendi muito bem qual era a bronca dela. Parece que teve algum amigo ou parente que se envolveu na luta armada ou algo do tipo. Não me lembro com precisão de onde foi que o calo apertou. O fato é que ela disse que eu tratava o tema da guerrilha urbana com frivolidade.
Quem conhece a peça sabe que um dos personagens se envolve na luta armada, cai na clandestinidade e depois foge do país, permanecendo exilado na França até a anistia. Mas trato tudo com bom humor, tentando escapar do tom panfletário dos anos 70, quando não era possível abordar o tema sem a seriedade que todos achavam que merecia.
Mas quem conhece a peça também sabe que não há qualquer intenção de desrespeito com aqueles que se envolveram na luta durante o período. A Luiza Barreto Leite, entretanto, insistia em dizer que eu havia sido leviano ao abordar o tema. Sem experiência em debate, me esqueci de que o microfone que eu segurava estava ligado. No meio da explanação dela, soltei um involuntário e inocente "Ah, vai tomar no..."
Era só aquele tipo de desabafo que a gente fala pra ninguém ouvir, quase um resmungo. Mas, com o microfone ligado, toda a plateia ouviu. Ficou parecendo que eu havia realmente xingado a dona Luiza. Ela ficou indignada com a "falta de respeito" e saiu da sala em protesto. Prestando solidariedade a ela, todo o júri se levantou e foi junto.
E nós ficamos lá, abandonados à própria sorte e sem a menor chance de concorrer a qualquer prêmio do festival, depois de nossa demonstração de "desrespeito". Ocorre que a maioria dos outros grupos do festival já havia sofrido com as críticas do júri e da dona Luiza, e eu me tornei uma espécie de herói.
Onde eu ia, as pessoas vinham me abraçar e me parabenizar pela atitude de coragem. Me tornei uma espécie de porta-voz dos anseios coletivos. A partir daquele evento, ficamos conhecidos como o grupo que "quebrava o pau" com o júri. Em todos os festivais de que a gente participava, fazia valer a nossa fama. A gente não arregava.
Em Presidente Prudente, no debate de "Feliz Natal, Charles Bukowski", em 1985, mandamos o júri inteiro para o inferno. Eles todos se levantaram e foram embora.
Depois, fomos expulsos do festival pela organização, que alegou "baderna no alojamento". Conseguimos a intervenção do delegado de cultura, que garantiu nossa permanência no festival sob a supervisão dele.
E há muitas outras histórias do tipo. O saudoso Ademar Guerra costumava dizer carinhosamente -e entendendo o nosso espírito- que "o Cemitério de Automóveis não é um grupo de teatro, é uma gangue de rock and roll". A fama de baderneiros e "garotos sem nenhuma educação" perdurou até meados dos anos 90, quando a gente decidiu que "era hora de crescer" e que a brincadeira já tinha perdido a graça. Mas foi divertido enquanto durou.


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