São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2010

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ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Tertúlias com Bento

São Paulo, 1968

JOSÉ ELI DA VEIGA

BENTO PRADO JR. (1937-2007) revelou à "Revista de Antropologia" (2003) que, ao conhecer Pierre Clastres (1934-77), autor de "A Sociedade contra o Estado" (Cosac Naify), logo se deram bem porque Clastres também era "mais chegado a um boteco do que a um seminário formal".
Foi justamente o que me permitiu aprender muito com Bento: em quase 40 anos, tivemos apenas um encontro acadêmico, quando fui à Universidade Federal de São Carlos, em 1980, para discorrer sobre a reforma agrária alentejana -tema da tese de doutorado que tinha acabado de defender em Paris, pouco antes de voltar anistiado, aos 31 anos.
Não fosse Bento um "notívago atormentado que preferia que a noite não terminasse e que temia a luz do dia seguinte" (como disse Roberto Schwarz no caderno Mais!, da Folha, em janeiro de 2007), é bem provável que teria demorado uma enormidade para entender a necessidade crucial de que os intelectuais se despojem de sua função "arcôntica" para encontrar graça na adesão à função contrária, "anarcôntica".
São palavras do próprio Bento em mesa-redonda intitulada "Por que filósofo?", na reunião da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) de 1975, em Belo Horizonte.
Demasiadamente obscuro, não é? Mas fica mais claro com a leitura da entrevista sobre Gilles Deleuze (1925-95), que Bento deu também ao Mais! (junho de 1996), e reproduzida em seu livro "Erro, Ilusão, Loucura" (Ed. 34).
À pergunta sobre o lugar que a crítica de Deleuze ocupa na formulação política, respondeu: "Do ponto de vista político, significa, talvez, a mais perfeita expressão do esquerdismo na sua vertente anarquista. E poderia uma filosofia, cuja vocação essencial é a de instaurar uma metafísica 'anarcôntica', exprimir-se politicamente de maneira diferente?"
Nunca foi outra sua atitude nas tertúlias em "botecos" a que tive o privilégio de assistir, que infelizmente sumiram. Dos célebres Chic-Chá da avenida Angélica e Riviera, em frente ao Cine Belas Artes (1968), ao Nabuco, da praça Villaboim (2005), em São Paulo.
Apenas sobrou -e bem longe de Sampa- o La Rotonde, esquina dos bulevares de Montparnasse e Raspail (em Paris), ponto de encontro nas noites de exílio com o casal de amigos uspianos Célia Galvão, da ciência política, e Zé Chico Quirino dos Santos, da antropologia. Mas só nas poucas vezes que Bento deixava sua casa, na distante Pierres, para um "seminário formal" vespertino.
Apesar da arraigada postura anarcôntica, foi Bento quem sugeriu a outro Prado, o Caio Graco (1931-92), que me convidasse a escrever o meu primeiro livro, mesmo sabendo que só poderia resultar em abordagem eurocomunista: "O Que É Reforma Agrária" (Ed. Brasiliense, 1ª ed. em 1981, 17ª e última em 2005). É que percebera que a minha pesquisa de campo deixava nítida como resistiam melhor à contrarreforma as cooperativas não enquadradas pelo dirigismo estalinista do PCP (Partido Comunista Português).
Todavia, mais do que um nobre gesto, o que me levou a abrir este arquivo foi principalmente a memória do dia em que o conheci. Mal havia completado 20 anos de idade quando fui ouvi-lo numa minúscula sala do prédio do curso de filosofia da USP, na rua Maria Antônia, sobre o Maio de 1968 parisiense para matéria do "Grêmio Informa", um dos precursores da imprensa nanica, então editado por Raimundo Pereira.
Foi um contato de primeiro grau com a sua entusiasmada adesão à "imaginação no poder" e aos arroubos de Daniel Cohn-Bendit. Postura avessa ao nosso desconfiado doutrinarismo infantojuvenil, que só relaxou quando as centrais sindicais tomaram as rédeas e enquadraram os revoltosos.
Como a única coleção desse jornal a escapar das garras da ditadura militar está no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), na Unicamp, é a ele que os leitores ficarão devendo esta oportunidade de ver a capa da referida edição. Fruto de um espasmo de melancolia anarcôntica.


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