São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

11 DE SETEMBRO

A cidade nua

As 8 milhões de histórias de NY

RESUMO O autor de "Bombaim: Cidade Máxima", que dividiu seus anos de juventude entre a metrópole indiana e Nova York, reflete sobre sua experiência do multiculturalismo na maior cidade americana, muito diferente do modelo das metrópoles europeias. Leia a íntegra do ensaio em folha.com/ilustrissima.

SUKETU MEHTA
TRADUÇÃO CLARA ALLAIN

Em 1948, o escritor E. B. White formulou uma definição dos três tipos de nova-iorquinos que ficaria famosa: o nativo, o migrante diário (que vem todos os dias para trabalhar ou estudar) e a pessoa de outro lugar que vem em busca de alguma coisa.
Hoje existem três tipos diferentes de nova-iorquinos: as pessoas que agem como se tivessem nascido aqui, que se sentem "donas" da cidade, mesmo que tenham se mudado para cá depois de concluírem a faculdade; as pessoas que estão aqui e gostariam de estar em outro lugar, tão tóxica a cidade já se tornou para elas; e os nova-iorquinos virtuais do mundo inteiro, que vivem em cidades que vão de Sarajevo a Santiago e gostariam de morar em Nova York.
Esses são os três estados de espírito nova-iorquinos, e o que eles têm em comum é o anseio e um elemento de autoilusão. Esta é uma cidade de sonhadores e insones.
De minha janela em Manhattan, vejo o buraco no horizonte da cidade onde antes ficava o World Trade Center. Vivo na mira de todos os malucos e terroristas do mundo. Os terroristas do 11 de Setembro sabiam o que iam fazer quando dois dos três aviões que sequestraram rumaram para Nova York. Quando os malucos querem registrar suas objeções à
América, ao cristianismo, ao capitalismo, à dance music, a qualquer coisa, sempre vêm para Nova York. Vivemos nesta cidade feito uma língua entre os dentes.

DIVERSIDADE Mas isso não impede as pessoas de quererem se mudar para cá, gente de todo o planeta: dois em cada três nova-iorquinos são imigrantes ou filhos de imigrantes. Assim como eu era quando, aos 14 anos, me mudei de Bombaim para Jackson Heights, no Queens, o distrito mais etnicamente diversificado dos EUA.
Meus vizinhos eram indianos e paquistaneses, judeus e muçulmanos, haitianos e dominicanos -vinham se matando mutuamente até pegar o avião. Aqui, porém, essas pessoas vivem lado a lado com seus inimigos seculares, e os filhos de uns namoram os de outros.
Podem até continuar sem se gostar, mas não se atacam, nem se vandalizam; concordam em tolerar os vizinhos. Já faz anos que não acontece um conflito étnico importante na cidade.
Como nenhuma etnia domina, nenhuma comunidade isolada é vista como culpada quando há problemas ou quando a economia vai para o brejo.
Volta e meia explicam-se os problemas das cidades europeias citando o desemprego ou a desigualdade. Mas Nova York é a cidade mais desigual dos EUA. Em 2007, segundo estudo do Instituto de Política Fiscal, 1% dos nova-iorquinos ganharam 45% da renda da cidade (em 1980, esse grupo recebeu 12% da renda). Contas feitas, dá uma média de US$ 3,7 milhões por ano para as 34.500 famílias mais ricas da cidade. A renda diária média desse grupo é maior que a renda anual média dos 10% mais pobres.
Por que, então, as pessoas ainda vêm tentar a sorte neste lugar inóspito? A população deve crescer em mais 1 milhão nas duas próximas décadas, sobretudo devido aos imigrantes.
Seriam as oportunidades ou uma ilusão o que os atrai?

HIERARQUIA Eles vêm porque todo recém-chegado que desembarca no aeroporto JFK pode encontrar um lugar na hierarquia local. Num restaurante, o chef pode ser francês; o pessoal que lava os pratos, mexicano; a hostess, russa; o taxista, paquistanês; o dono do táxi, britânico. Não são todos iguais. Não ganham a mesma coisa. Mas trabalham juntos para servir comida a pessoas com fome. É feito o sistema de castas dos hindus: não é equitativo, mas cada um tem seu lugar.
O que Nova York demonstra, sua lição às outras cidades ricas como Amsterdã, Paris ou Tóquio, é que a imigração funciona. A cidade pode usar os imigrantes, até mesmo os ilegais.
"Embora tenham infringido a lei ao atravessar nossas fronteiras ilegalmente", observou o prefeito Michael Bloomberg, "a economia da nossa cidade seria apenas uma sombra do que é se eles não tivessem feito isso, e entraria em colapso se eles fossem deportados."
Cada imigrante é um épico em formação. É atraído pelo mito fundador da cidade: tenta escapar da história pessoal e política. Para ele, Nova York é a cidade da segunda chance.
Nova York é a maior, a mais rica e a mais acelerada cidade dos EUA. Ela tem mais gente que Los Angeles, Chicago e Filadélfia -somadas. Há 8 milhões de histórias na cidade nua, e em pouco tempo serão 9 milhões (a área metropolitana tem 22 milhões de habitantes -ou seja, um em cada 14 americanos). Essas pessoas fazem dos 831 km2 de Nova York o lugar mais densamente povoado da América do Norte. Como observou Le Corbusier, "uma parte considerável de Nova York nada mais é que uma cidade provisória, uma cidade que será substituída por outra cidade".

EXPERIMENTO Às vezes Nova York inteira dá a impressão de ser um vasto experimento social, em que exilados de todo o planeta se reúnem para sentar-se a uma mesa comprida e falar sobre as coisas que importam: amor, morte e dinheiro. Hoje os nova-iorquinos vêm de mais de 180 países.
O Queens é o condado mais diversificado dos EUA. Mais da metade dos moradores do Queens e do Bronx não fala inglês em casa. É uma cidade que volta e meia difere dos EUA; enquanto 40% de Nova York nasceu fora dos EUA, esse é o caso de apenas 12% do país. Nova York é uma ilha num país em que, até recentemente, 80% da população nacional não tinha passaporte.
A população imigrante da cidade cresceu 38% entre 1990 e 2000. Dos cinco distritos de Nova York, o Queens é o mais estrangeiro, com 46% de seus habitantes nascidos no exterior, e bairros como Elmhurst têm 70% nascidos fora dos EUA. Apenas 16% dos moradores da verdejante Staten Island nasceram no exterior, embora esse distrito tenha grandes comunidades de italianos (mais de metade da população é de origem italiana), cingaleses e nigerianos.
A cidade é muito mais diversa hoje do que era no século passado: 31% branca, 20% negra, 14% asiática e 35% hispânica. O maior grupo imigrante é formado pelos 532 mil dominicanos da cidade, mas mais moradores têm origem italiana que qualquer outra origem. O grupo em crescimento mais rápido é formado pelos mexicanos, cujo número cresceu em mais de um terço nos últimos cinco anos.
Nos últimos anos, Nova York ganhou mais moradores que qualquer outra cidade americana. Com 800 mil novos nova-iorquinos, já passou as cidades do Cinturão do Sol, hoje em franco crescimento. Depois do 11 de Setembro, porém, muita gente pensou que Nova York ficaria mutilada; as empresas financeiras do centro falaram em deixar a cidade. A população de Manhattan diminuiu. Apartamentos em Battery Park foram postos à venda por uma pechincha.

RECUPERAÇÃO Mas a cidade se recuperou, e com força. Nova York não virou Nova Orleans. Não é uma cidade segregada. Os imigrantes salvaram Nova York e a mantiveram em ação. As escolas teriam se desfeito, não fosse pela energia e pelo investimento pessoal de pais imigrantes.
Nova York teria sofrido um declínio populacional líquido, não fosse pelos imigrantes. Os imigrantes, ricos e pobres, não se deixaram desanimar pelo 11 de Setembro; muitos já viram coisa muito pior em suas terras de origem. Enquanto um número considerável de pessoas da classe média deixou a cidade após o desastre, os imigrantes permaneceram.
Agora Nova York vai receber 1 milhão de novos habitantes nos próximos anos, a imensa maioria imigrantes ou filhos de imigrantes. Os imigrantes também conseguem superar a crise habitacional sem se abaterem. Como observa Joe Salvo, chefe da divisão de planejamento demográfico de Nova York, "os imigrantes não se importam com a densidade. Eles simplesmente dobram a ocupação dos lugares".
Assim como Bombaim é um símbolo de certo tipo de megacidade no mundo em desenvolvimento -como São Paulo, Lagos e Jacarta-, Nova York é a joia na coroa de outro grupo de cidades no planeta: Londres, Paris, Sydney, Toronto. Todas seguem seus próprios métodos para lidar com porcentagens de estrangeiros que não têm precedentes históricos.
Paris achou que tinha a questão resolvida -bastava empurrar os pobres e os estrangeiros para a periferia-, até explodir em 2005, quando bandos de jovens imigrantes atravessaram o Boulevard Périphérique e atearam fogo a carros nas margens do Sena. O experimento com o multiculturalismo empreendido em Paris, Amsterdã e Berlim vem sofrendo problemas porque os imigrantes nessas cidades nunca chegam a se sentir realmente franceses, holandeses ou alemães. Dá para se sentir americano ao desembarcar do avião.
Nos últimos dez anos, Nova York tem estado em primeiro lugar no país como a cidade na qual as pessoas mais gostariam de morar ou da qual mais gostariam de estar perto. Há alguma coisa em Nova York que está funcionando.
As pessoas vêm para cá, vindas de partes do mundo onde estavam a se matar, mas em Nova York elas vivem ao lado de seus antigos inimigos, e os seus filhos namoram as filhas deles. Como acontece esse milagre do dia a dia?
Se entendermos como Nova York funciona, poderemos enxergar como poderia funcionar em outras cidades, como as cidades-campos de batalha da Europa.

Quando os malucos querem registrar suas objeções à América, ao cristianismo, ao capitalismo, à dance music, a qualquer coisa, sempre vêm para Nova York

Nova York dá a impressão de ser um vasto experimento social, onde exilados de todo o planeta se reúnem para falar sobre as coisas que importam: amor, morte e dinheiro

Os imigrantes, ricos e pobres, não se deixaram desanimar pelo 11 de Setembro; muitos já viram coisa muito pior em suas terras de origem


Texto Anterior: FOLHA.com
Próximo Texto: O durão desarmado e a bonequinha de luxo
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.